Tibures

O frio é mesmo uma sensação térmica e, como tal, interfere bruscamente na rotina humana. Cito os Tibures como exemplo. O nome, de origem desconhecida, refere-se a um conjunto de pessoas que passaram maus bocados sob efeito de baixas temperaturas. No começo, enquanto tinham lenha para queimar, faziam fogueiras e esquentavam a água para tomar banho. Comiam mocotó, caldo de feijão e torresmo. Providos apenas de tangas e plumas, praticavam esportes não aquáticos e se abraçavam independentemente do afeto que tinham um pelo outro. As falsas demonstrações de carinho eram mais comuns do que as atitudes intempestivas dos integrantes do grupo. Um dos rapazes decidiu enfrentar a cachoeira gélida e jamais voltou. Jéssica, pouco apegada aos mandamentos da equipe, se irritou com os companheiros e resolveu caminhar indefinidamente até ficar imóvel e cair de lado. Alertados pelo insucesso dos colegas, os mais sensatos faziam reuniões às escondidas para definir a melhor estratégia de fuga. Se meteram na enrascada porque certo dia deram moral demais a um inconseqüente líder metido a calorento.

Joana

Do jeito que as coisas iam, beijar a menina não era questão de tempo. Até pensou em abrir o jogo pra ver se dava sorte, mas, ao invés disso, preferiu adotar uma tática nada promissora: ficar na dele e esperar que a iniciativa partisse do outro lado. A representante do sexo oposto, que gastava os dias úteis na expectativa pelos inúteis, sequer pensava na existência de Osmar. Dois, três meses e nada. O galanteador de meia tigela então decidiu arregaçar as mangas. Precisava chamar a atenção com algo que fizesse diferença e gerasse algum tipo de admiração em Joana. Para garantir um mínimo de auto-estima, começou pelo tratamento estético. Penteou o cabelo, foi pra academia, comprou perfume e tudo mais. O passo seguinte envolvia interação direta com a moça. Ensaiou algumas frases e, através de um dos meios de comunicação tradicionais, meteu bronca. Foi educadamente descartado. Já estava em outra quando ela ligou para revelar o surgimento do interesse. Tinha muito o que dizer, mas achou melhor deixar barato. Sabe que não consegue tapar as orelhas por muito tempo.

Cenários

Não sabe de antemão se vai ser melhor ir pra praia ou ficar em casa. Faz um balanço das opções e, sem convicção, decide de acordo com o aproveitamento previsto. Se vai pra escola, precisa aprender alguma coisa. No circo, o palhaço tem que ser bom. Pensa na tal produtividade até mesmo durante as atividades. Vê tudo do lado de fora. Critica cenários, personagens e diálogos. Sempre arrependido pelos dias desperdiçados, comemora idas a bons restaurantes e pedidos certeiros. Só percebe que está bem de vez em quando, normalmente em episódios caracterizados pela ausência de raciocínio lógico. Muitas vezes fala e espera a reação dos outros. Até gosta de ficar sozinho, mas prefere a companhia de pessoas com as quais possui intimidade avançada. Desenvolve, ao longo de longas conversas com a parede, técnicas capazes de impedir que o pessoal da rua descubra tudo. Ficou surpreso ao reparar a satisfação obtida em ambos os casos. Quando escolheu a praia, passou um tempo vidrado no mar.

Prenda

Entrou sem vaselina na vida de Rogério. De mãos atadas, aceitou a prenda e manteve a cabeça voltada somente para os benefícios. O barco, pintado de verde, até que agradava. Apostava corrida com os marujos de plantão, fazia manobras arrojadas e se aproveitava do estranho fetiche das meninas assanhadas. Pilotou em velocidade de cruzeiro até não agüentar mais. O curto período antecedeu as longas e cansativas viagens que precederam a repugna pelos tripulantes e passageiros. Inconformado com a proporção de cinco pra dois fora os feriados, começou a navegar de mau humor. Buscava, aos trancos barrancos, uma forma de gozar a vida sem as constantes interrupções. Olhou para os lados e notou que o envelope em cima da mesa gritava. Movimentou a correspondência da mão esquerda para a direita e decidiu correr o risco de desvendar o conteúdo. Mais calma, a carta dizia.

Goles

Eram os últimos goles de uma cerveja quente. Depois de observar o mundo ao redor, que borbulhava devido ao encontro entre pessoas animadas, resolveu ir embora a pé. Concentrado, maquinava uma forma de perpetuar o momento fadado ao insucesso quando foi interrompido por um cachorro quente completo e aquecido na chapa. Só deu ouvidos ao lunático de cabelos curtos para ver se o inexplicável desejo pela loira repugnante seria saciado. Imaginem um casamento em que a esposa fora recentemente mordida por um cachorro e o marido seja incapaz de se movimentar sem auxílio de aparelhos. De tanto pensar nas inúmeras variáveis, se perdeu na etapa mais elementar do trajeto. Passado o susto, graças ao andarilho do qual pouco se lembra, retomou o caminho correto. Passou ileso pelo ponto de táxi antes de subir os lances de escada que o separavam do local mais agradável. Sonolento, dobrou as roupas de qualquer jeito para em seguida enfiar tudo dentro da mala. Dormiu pelado, deu aula de sunga e viajou sem cueca.

Corredores

Nem me pergunte o que acho do cara que fez aquilo com a mulher do amigo. Sei por A mais B da existência de justificativas para a execução de atrocidades, mas certas coisas são demais. Ainda tentei colocar na cabeça do infrator que não valeria a pena correr o risco. Que seria melhor deixar pra lá e continuar de bobeira em casa. Após pedir um copo d’água e calçar as meias, coloquei o tênis errado só pra dar uma enrolada. Levantei do sofá apreensivo. Quando passamos sorrateiramente pelo portão, meu rosto já não escondia o medo de prosseguir. O idealizador da atividade, macaco velho, estava empolgado. Reclamava de minha lentidão enquanto pensava alto nos detalhes. Bem ao seu estilo, proferia frases desconexas ao mesmo tempo em que coçava os braços com olhar fixo em pontos aleatórios. Chegamos e logo dividimos os papéis de acordo com o perfil de cada um. Fiquei com a parte que queria desde o começo. Invadir a casa do camarada e andar pelos corredores é piada perto da utilização do negócio que escorrega para tal finalidade. Logo em seguida pegou a menina pelo braço, andou rapidamente até a esquina e diminuiu o ritmo para atravessar a rua. Só se deu conta do resultado da mancada depois dos primeiros golpes. Corri o quanto pude.

Quarto

A casa vermelha de muro branco dava de frente para a rodoviária. O cômodo preferido, freqüentado nos momentos de carência afetiva, era permanentemente habitado por três mulheres sempre dispostas a manter relações sexuais com o proprietário. Fruto de um antigo desejo de Reginaldo, o quarto das putas esteve ativo de março a setembro do ano passado. Contratou doze meninas e as separou em quatro equipes. Cada trio ocupava o aposento durante seis horas por dia, o que eliminava a possibilidade de viagens perdidas. Entre as exigências, estavam a alteração semanal da composição dos grupos e a realização de festas de boas-vindas em todas as aparições do chefe. A manutenção da limpeza e cheiro agradável no ambiente também faziam parte do acordo. Muitas das visitas de Reginaldo não eram planejadas. Localizada estrategicamente no caminho entre a cozinha e a sala de estar, a porta azul de madeira acabava sendo aberta mesmo em ocasiões inapropriadas. Não conseguia terminar os relatórios nem ver a última parte dos filmes.

Quinze

O que antes fluía tornou-se questão de honra para o rapaz ainda em fase de maturação. Quinze seria o ideal. Não que fosse uma obrigação ou algo extraordinário. Só queria eliminar a possibilidade de, com o tempo, sentir dificuldades. Engraçado como se concentrava à espera do conselho seguinte. Os lampejos enfileirados sumiam do mapa até aparecer um que prestasse. Em estado de transe, proporcionado pelo apego ao ato, rabiscava tudo e começava de novo. As melodias chegavam aos ouvidos sem cerimônia. Um terceiro elemento aparece com uma nova abordagem. Assim como os corpos que transitam por aí, prossegue confiante e desconfiado de tudo. Abriu a porta pra ver se vinha alguém. Não fosse por isso, a precedente afirmação antecederia imediatamente a próxima. O dia e o dia seguinte estavam sob controle.

Espelho

Se olhou no espelho e se achou bonito. Estava pronto para viver o mais bem aproveitado dos quase 10000 dias colocados a disposição até agora. Em resumo, acordou sem pensar no que teria que fazer, fez o que deveria ser feito e dormiu com uma mulher que o tornava capaz de acreditar. A falta de detalhes irrita os colegas. É o único da rapaziada que não revela as peripécias sexuais aos quatro cantos. Obedece a uma ética própria de que, se é para contar vantagem, também deve divulgar as decepções. Como a balança pesa para o lado das derrotas, tornou-se uma pessoa de poucas palavras. Os amigos narram histórias incríveis em pormenores. Escuta tudo atentamente e só comenta alguma coisa de vez em quando. Por mais que superestimem o conteúdo do rapaz, os ouvintes sabem que há algo de errado quando tanta expectativa é bombardeada por frases comuns. Sentem na pele o efeito da introspecção em níveis avançados.

Valdir

Sofre porque tem um pau que, mole, é maior do que duro. A anomalia, percebida facilmente a cada ereção, atormenta a vida de Valdir. Nunca chegou aos finalmentes. Toma banho, passa perfume, arruma a casa, faz o diabo. Só não consegue evitar que as mulheres percebam o efeito inverso das carícias mais atrevidas. No auge da excitação, fica minúsculo. Desagrada. Algumas, na esperança de alcançar um meio termo que permita um encaixe minimamente prazeroso, tentam reduzir a libido do sujeito. Não adianta. Nem assim a coisa vai. Desprovido de controle suficiente para fazer a estratégia funcionar, Valdir lamenta pelas expressões de espanto e decepção. O trauma aumenta quando divulgam. Sem graça, mata no peito as gozações, cochichos e desenhos colados na parede.

Peões

Louca por xadrez desde criança, jamais se recusou a iniciar uma partida. Assistia a todos os jogos, colecionava figurinhas e permanecia imóvel em frente ao tabuleiro até perder as esperanças de alguém ocupar o outro lado. Teve uma vez que ganhou de cinco a zero do tesoureiro do colégio e, de lambuja, passou por cima do irritante dono da cantina, que sempre entregava os pontos antes da hora. Também já levou surras inesquecíveis. Mal das pernas, tomou de quatro do primo mais velho na própria festa de aniversário. Era comum passar noites em claro praticando os principais movimentos e descobrindo novas possibilidades. Hoje em dia, envolvida em tarefas alheias ao esporte, só joga uma vez por semana na casa de um amigo. Ansiosa pela chegada de cada terça-feira, imagina lances de efeito e atuações impecáveis. Só está no ramo de revelação em papel de fotos digitais porque não faz tão bem o que mais gosta de fazer.

Peixes II

De repente a porcentagem de oxigênio no ar caiu de 20 para 10%. Suficiente apenas para metade da população, a quantidade disponível foi disputada a tapas pelos cadáveres em potencial. Homens frágeis, mulheres, crianças e outros tipos de animais farejadores foram exterminados. Já os mais fortes, sobreviveram tranquilamente até se darem conta de que, no calor da disputa, esqueceram o lado digestivo da coisa. Só sobraram os peixes e vegetais para comer. Enquanto as plantas estavam a salvo graças ao resultado da fotossíntese, os escamosos lamentavam o fato de se movimentarem a esmo e caírem em armadilhas infantis. Um deles, por exemplo, fez questão de abocanhar o misterioso alimento prateado em forma de interrogação. A luta pela vida estava em alta no fundo do mar. Assim como os humanos no início do texto, os nadadores sem braço também sentiram na pele o efeito da parceria entre a seleção natural e o livre arbítrio. Os avantajados logo fixaram território em locais seguros e mandaram as tainhas e tilápias para o pelotão de frente.

Mãos

Se masturba pelo menos duas vezes por semana no trabalho. Apesar de consciente da bizarrice, convence a si próprio com o argumento de que todos somos esquisitos. Ninguém escapa. Além do mais, deve-se admitir que o sujeito tem talento pra coisa. O ritual se repete há anos e nunca houve quem desconfiasse da atividade física exercida nos dias mais excitantes. As precauções são simples: confere o trinco da porta, não emite sons e limpa tudo direitinho. Para os colegas, é só mais um fazendo necessidades. Quando não apela para lembranças de atos libidinosos marcantes, o onanista é estimulado por emails depravados, sites proibidos e revistas escondidas. Não liga se o compromisso seguinte é uma reunião de negócios ou uma festinha do departamento. Se limita a refazer o nó da gravata, dar uma olhada no espelho e seguir em frente.

Fraqueza

Mais animado que de costume, saiu de casa com sorrisos nos lábios e a idéia fixa de se manter para cima até a hora de dormir. Brincou com os cachorros, tomou café da manhã na rua e, desafinado, entoou canções não aprovadas pelos ouvintes. Uma resposta seca aqui, uma mesmice ali e o plano dava os primeiros sinais de fraqueza. Ao meio-dia já precisava forçar a barra para evitar que os pensamentos de sempre tomassem conta. A tarde, longa e nem tão estressante assim, parecia feita sob medida para um início de noite barulhento e composto por ocorrências não recomendadas aos que lutam pela manutenção da leveza de espírito. Chegou em casa um bagaço. Trocou de roupa, descansou um pouco e buscou alternativas para não deixar a peteca cair de vez. Saiu de cara amarrada imaginando como seria bom alcançar novamente o astral da manhã. O raciocínio, similar ao de quem se machuca e esquece como é estar cem por cento, foi substituído pela distração proporcionada por atividades com alto grau de entretenimento. Perdeu contato com a realidade convencional até a hora de dormir.

Teatro

Alheios ao mundo moderno devido ao apego que tinham pelo passado remoto, foram ao teatro. Ronaldo vestiu-se de pedreiro, Cícero de carpinteiro e Jonas de atleta. De casa em casa, pediam donativos para consumo próprio, apesar de abastados e conhecidos do público em geral. O desespero bateu em todos os que não entediam e, incomodados com o acúmulo de indagações cadastradas no inconsciente coletivo, insistiam por pura teimosia. Saíram como entraram. Os protagonistas também. Amigos de longa data, encontraram-se mais tarde no quintal de Jonas, equipado com diferentes portadores de frutos e vegetais. Enquanto discutiam o evento, entreolharam-se para, em seguida, emudecerem. Remoem juntos e carregam o peso até hoje. A temporada abandonada, se submetida a eficientes técnicas de personificação, aguardaria os próximos capítulos com más intenções.

Peixes I

Assim que viu, pensou: xiiii! Diferentes tipos de peixes nadavam contra a correnteza em pleno verão. Para não ficar pra trás e dar o braço a torcer, decidiu perseguir os tambaquis e dourados com disposição semelhante à de quem entra em um vulcão na hora errada. Pulou na água fria e disparou. Menos adaptado ao mundo marinho, assistiu ao constante distanciamento dos escamosos enquanto era atacado por elevações provocadas pela maré. Ficou pra trás, cansado e já não enxergava partes de corpo humano na longínqua areia da praia. Hora de recuar. As corujas e tartarugas assistiam animadas ao inútil esforço do sujeito, que ia e voltava de acordo com o fluxo imposto pelo líquido salgado. O pânico, diretamente proporcional à violência das ondas e ao escurecimento da atmosfera, fez o banhista prosseguir na luta para sentir o solo abaixo dos pés.

Fila

Preso pelo pé e prestes a afundar mais um desconhecido, o martelo sabe que Arnaldo é o próximo da fila. O inocente assassino, comumente afetado por fortes dores de cabeça, tenta a todo custo escapulir da mão suja a tempo de evitar o golpe fatal. Um pouco mais para a direita, para a esquerda e uma pancada de raspão. Na quarta não teve jeito. A amizade começou quando saíram do estoque direto para a caixa de ferramentas. Comumente acionado para trabalhos externos, o utensílio de ferro com cabo de madeira omitia o inevitável destino para não piorar o astral do garoto, afetado pela vontade incessante de passear. Puxava conversas superficiais, montava quebra-cabeças e lia histórias em quadrinhos. Criava situações engraçadas e tomava refrigerante. O último encontro foi embaraçoso.

Czares

Na época dos czares, a Rússia era bem maneira. Ivan IV, por exemplo, morreu louco. O ex-desenhista, agora pálido e afastado do nível do mar, estava um passo à frente dos demais. Enquanto os concorrentes vinham com o fubá, o angu de Ivan já estava pronto. Sua obra mais marcante foi a representação gráfica de um menino diante de uma tabuada colorida. Números em perspectiva. O diferenciado trabalho de IV caiu como uma bomba no meio artístico da antiga URSS. Os conservadores acharam besteira no início, mas logo compararam as telas com as de profissionais consagrados. Querendo ou não, a pintura de alto nível passava de fase. A insanidade adquirida por Ivan no fim de carreira tem relação direta com os produtos consumidos no início e durante. Um dia, sem mais nem menos, teve um filho. Ficou tão feliz com a escolha do nome que decidiu não fazer mais nada.

Busca

Olhou para o lado mas não viu o dispositivo azul com uma luz vermelha brilhante. Assim como os companheiros de espécie quando perdem o que não devem, começou a grande busca. Fuçou o quanto pôde e apelou para os locais mais improváveis. Varredura completa. O nó estava preso na garganta e a avalanche de pensamentos relacionados ao mesmo assunto crescia em progressão não identificada pela matemática contemporânea. Além de não poder compartilhar a sensação com os cidadãos ao redor, precisava manter a linguagem corporal inalterada, as frases articuladas e o senso de humor em dia. Limpava discretamente o suor enquanto os implacáveis minutos passavam sem dó. Quando já não agüentava mais, cochichou com o rapaz ao lado e foi instruído a vasculhar os bolsos e a mochila. Nada feito. Seguiu então para o banheiro e fechou os olhos para tentar completar mentalmente o trajeto entre o último instante em que via e o primeiro em que não via mais o dito cujo. Nada feito de novo. Os dias se sobrepunham constantemente e o protagonista era periodicamente acometido por lampejos que o lembravam da perda. Pelo menos o mal estar diminuía ao passo em que os dias viravam meses e assim por diante.

Lanternas

Semana sim, semana não, saem de cena as Lanternas de Outubro (LO). Movidas a pilha e embebidas em cromo, são pouco resistentes ao calor e possuem características físicas comuns. Fora o aspecto, nada mais é trivial em relação ao artefato. O poder conferido ao Dono de Lanterna (DL) é tal qual a força da natureza, que pode fazer de um pingo, letra. Tudo estaria perfeito não fossem as semanas não, que sucedem e antecedem a parte boa da coisa. Inconformados com a existência do período, os proprietários esquecem os momentos de prazer promovidos pelo objeto e perdem a cabeça. Em 1813, por exemplo, o meteorologista e DL Charles Norton se irritou ao ouvir a seguinte afirmação da própria esposa: você é um merda! Deu chilique e, empunhando uma lendária LO, agrediu a companheira. O fato veio à tona e a já enfraquecida cúpula decidiu afastar Charles. A partir de então, nada mais era claro e o receio tornou-se unanimidade entre os membros da decadente confraria. A tal Lanterna, jogada no canto, assistiu passivamente ao caos vivido na década de 20 daquele século.

Peso

Regina dirigia uma academia dirigida a pessoas envergonhadas pelo desprestígio físico imposto pela falta de sorte. Os halteres mais pesados, comumente sacaneados pelos coloridos devido a pouca intimidade com o sexo oposto, gozavam de sombra e água fresca enquanto os antigos zombadores se viam às voltas com a ausência de sex appeal. O estabelecimento era novidade no mercado, conquistou clientela e capitalizou a proprietária. O lado negativo da ascensão meteórica é que a tendência de crescimento tirava completamente Regina do prumo. O mal estar entre as placas, percebido apenas pelo homem magro que malhava perna, precisava ser contornado. De um lado, a sobrecarga de trabalho. Do outro, o ócio. As erguidas facilmente destratavam a freguesia e faziam hora extra. As pesadas contavam piadas e compartilhavam conteúdo esportivo e pornográfico. Resumidamente, o circo queimava e a derrocada era questão de tempo. Incapaz de perceber a gravidade da situação, Regina acompanhava o processo com desdém. Andou calmamente até o parquinho mais próximo e, como quem não quer nada, prosseguiu inoperante.

Ampulheta

Nem mesmo os crédulos acreditariam que a areia não queria mais descer e sequer dava trela pro outro lado da ampulheta. Após um longo burburinho, os componentes resultantes da decomposição de rochas resolveram dar um basta na interminável seqüência. Empolgados com a possibilidade, os grãos arquitetaram um plano que, resumidamente, consistia em permanecerem estáticos quando novamente revirados de ponta à cabeça. Estavam prontos. Como os moradores permaneceram um bom tempo indiferentes ao artefato, a hora H demorou um pouco a chegar. O ponto positivo do período potencialmente ocioso foi que puderam treinar exaustivamente o conjunto de ações a serem tomadas no momento decisivo. Quando finalmente a sombra cresceu, a porta do armário se abriu e a tampa da caixa foi levantada, deram as mãos e se colocaram a postos. Foi incrível. O lado vazio para baixo, o tempo passando e os minerais lá em cima, firmes e fortes. A mocinha balançava e batia no instrumento como quem usa um saleiro meia boca. Já os heróis, vivenciavam intensamente a realização do sonho, alimentado desde os primórdios do encapsulamento. O motim só não foi um sucesso absoluto porque a caçula queria muito brincar e chamou o pai.

Esfinge

Alecssandra foi o monstro mais temido e bon vivant de todos os tempos. Impaciente, punia todo e qualquer transeunte ignorante, incapaz de responder questões elementares com sabedoria. Certa vez, a futura empedrada e, portanto, eternizada criatura, fez a seguinte pergunta a um sujeito: tudo bem? Jovem, com bigode e pele rubra, respondeu: sim. Errado. Foi, de imediato, atacado por Alecssandra. Enfurecida com a demonstração clara de burrice extrema, transformou o saudável em defunto através do famoso golpe que virou marca registrada. Como é de praxe entre esfinges, devorou a carne ainda trêmula da vítima, que, caso estivesse viva, imploraria em prantos por misericórdia. Alecssandra tá exposta. É a terceira obra à esquerda de quem caminha pela praça na direção dos carros.

Almeida

Havia, em meados do século IV, um povoado ateu em terras hoje ocupadas pela esfinge mais enigmática do Egito. Conto a história de Alecssandra depois. Pois bem, a tribo era composta por 31 pessoas, sendo 15 homens, 15 virgens e uma criança. Ao contrário do que imaginamos, a vida no quarto século depois de cristo não era fácil. Como aquele tempo não conhecia as maravilhas tecnológicas atuais, os antigos tinham que tirar leite de pedra. Isto porque as terras do condado ficavam ao nível do mar e os animais comestíveis pastavam no alto da montanha. Lá, frente a frente com a refeição in natura, normalmente eram derrotados, pois não tinham idéia de como se portar em situações extremas. Curiosamente, enquanto os rapazes buscavam nutrientes e as virgens praticavam esportes, a misteriosa criança ficava em casa. O fim da linha pros Almeida foi um capítulo especial. Numa terça à tarde, durante cerimônia de confraternização, promoveram um campeonato de apnéia em que todos os membros da extinta comunidade sagraram-se campeões.

Casa

Sonha um dia morar numa casa de lingüiça. Motivado pela satisfação com que absorve o alimento, imagina portas de toscana, armários de suína e janelas de calabresa. Tudo regenerativo. Se entretém com a insossa tela de plasma e a fria geladeira de material não comestível enquanto o cimento e as pedras ainda o cercam. Fiel à esperança que tem, aguarda pacientemente pela concretização da vontade. Sabe que, caso tenha o poder de escolha no momento chave, tanto os colchões e molas quanto o teto e as lâmpadas terão o sabor de seus devaneios.

Pães

Aqueles pães de forma não queriam ir pra torradeira, não gostavam de manteiga e tinham pavor de serem deglutidos pelo cara nojento da padaria. Estavam tensos. Sabiam que aquela poderia ser a última noite. O tempo passava e ninguém ajudava. Se pudessem, empurrariam uns aos outros para cima do tabuleiro. Um deles se limitava a olhar para baixo. Sem autoconfiança, perdida no momento em que percebeu ser o único sem dois lados iguais, sofria por antecipação. Se fudeu também, é verdade, mas quase escapou. O nojento estava esfomeado naquela manhã. Quando pensou em parar, continuou. Apesar de ser da linhagem mais resistente, aquele pãozinho agia como um coitado. Morreu sem saber que era especial.

Galho

Distante de tudo, tudo mesmo, estava o galho. Ofegante, o jovem milagre mal podia se conter. Foi tiro e queda. A bala percorreu alguns quilômetros desde a longínqua terra dos malfeitores até o terreno baldio. Boa pistola. Precisão e persistência unidas em prol do envio do graveto ao limbo. Minutos antes, embebido em seivas bruta e elaborada, nosso herói desafiava o destino. Estava, porém, preso ao solo, aglomerado de minerais capaz de perpetuar qualquer vegetal em um lugar específico. A paralisia, inimiga mortal do desvio, encarregou-se de garantir a mera observação da chegada lenta e gradual do projétil. Já no Éden, livre para permanecer na mesma insossa vida de outrora, a inerte haste exibe um sorriso amarelo, marcado pelo menosprezo aos que menosprezam a importância da unidade para o todo.

Floresta

De tão grande que era, a floresta vivia às moscas. Coitadas. Fugiam de leões, garças, coelhos e tudo quanto é tipo de animal silvestre. Só relaxariam se estivessem em grupos de dois ou mais. Isto porque, nessa realidade, saberiam o que fazer. O ponto é que a referida espécie é incapaz de conviver pacificamente. Diferentes uns dos outros e inconseqüentes, os bichinhos armam arapucas e até conchavos para delatar os colegas. Uma das armadilhas pegou Roberto, mosca macho que estuprava e matava. Quem teve a brilhante idéia foi Marina. Astuta, cavou um buraco, deitou-se nua e esperou. No momento certo, voou. Mais irracional do que a média, Roberto bateu com a cabeça, desmaiou e caiu de costas. A pressa, para os que correm, é natural, assim como a aversão ao diálogo é para os voadores. Pouco acionadas, as cordas vocais dos insetos se atrofiavam, o que dificultava ainda mais a evolução da classe em caráter social. Até hoje não se conhece o potencial cognitivo alcançado pelos animaizinhos carentes.