Obstetra

Enquanto as aves se deslocavam em direção ao norte, várias atividades eram exercidas no andar de baixo, como corridas de curta distância e brincadeiras de mau gosto. Respirou fundo e fez força até a morte. Segundo consta, o erro seria evitado caso o obstetra tivesse abstraído os problemas pessoais surgidos minutos antes da cirurgia. Marinheiro fracassado, que pegava na proa quando deveria pegar no leme, o desmotivado doutor gostava de cinema. Desde pequeno ia à locadora da esquina para bater papo com o balconista e pegar os melhores longas da prateleira. Eram sete por semana: duas comédias, dois desenhos animados, dois de aventura e um de terror. Se apegou aos romances e suspenses depois de velho, quando já sabia muito sobre roteiros, fotografia, direção e elenco. De vez em quando assiste a filmes ruins porque se diverte dando pitaco em tramas mal acabadas.

Lixo

Uma pessoa que não pára de chorar acaba tendo que coçar os olhos. Ocupada com o transbordamento das emoções, não consegue jogar o lixo fora nem amarrar os sapatos. Perde interesse por saias curtas, rejeita competições televisionadas e deixa livros em segundo plano. Incapaz de manter a compostura, larga os pertences em cima da mesa. Não pára de fazer combinações mentais que geram resultados decepcionantes. Esquece os argumentos contrários ao derramamento e, descansada, senta no chão. Mãos no rosto. Dependendo do gosto pessoal, fica em pé, parada. Não vê o tempo passar e ignora o barulho lá fora.

Vento

Pendurada do lado de fora ao bel prazer do ar em movimento, secava. Para evitar contatos físicos e conversas sem pé nem cabeça, chegou um pouquinho pro lado e fingiu que estava dormindo. A tarde de sol não tinha nada demais se comparada com as outras. O quintal, que poderia ser descrito em pormenores, abrigava todas as peças momentaneamente indisponíveis. Mas aquela era especial. Disputado a peso de ouro pelas irmãs e irmãos, o objeto unissex judia dos concorrentes sem pestanejar. É bajulado à exaustão e só lamenta o fato de nunca ter descanso. Seja na festa de formatura ou no churrasco da esquina, está sempre estampado no peito de algum representante da família. A utilização intensa, que gera repetitivos ciclos de recuperação, diminui significativamente o tempo de vida do acessório. Meio sem jeito, caiu na grama. Está disponível para quem chegar primeiro.

Quadro

Enfurnado em casa há mais de uma semana, cismou que estava cercado por fotografias. Cada cômodo era uma. Entrou na cozinha e, com a mão apoiada na parede, esticou o pescoço para ver a sala. Disfarçou e olhou de novo só pra confirmar. Tava certo. Da cozinha andou pelo corredor até o imóvel quarto cheio de tralhas imóveis. Saiu e entrou de novo. Desta vez agachado, na esperança de mudar alguma coisa. Constatou que nada, além dele próprio, havia se mexido. Armários grudados nos cantos, lembranças dentro dos armários e roupas no chão, perto da porta. Levantou da cama para abrir a janela. Entrou no retrato do banheiro, lavou o rosto e saiu pela porta da frente. Bastou botar o pé na calçada para perceber que não faria diferença ir na loja da esquina ou correr pro ponto de ônibus. Deu a volta no quarteirão pra confirmar.