Concreto

Sérgio, distraído, tropeçou. Tava de tênis. Se tivesse de chinelo ou descalço, poderia ter machucado o pé. Passado o susto, chegou no palácio. Deu bom dia ao mordomo, entrou no quarto e dormiu. Não reparou no buraco na parede. De tamanho suficiente pra passagem de animais pequenos, oferecia perigo. Só de noite, depois de quase cortar o dedo com a faca de pão, notou a presença do vão no concreto. Botou a cabeça pra ver do outro lado. Como a cavidade era num canto e o salão era grande, escutou a conversa sem ser percebido. Falavam dele. Diziam que, por mais que quisessem, era impossível gostar. Listaram defeitos. Trouxe o crânio de volta pro aposento e tapou o furo. Triste pela descoberta, resolveu ir embora. Agiu como se não soubesse e anunciou a decisão. Ouviu, incomodado, pedidos pra que ficasse.

Seringa

No laboratório, misturou elementos incompatíveis. Deu errado. Devido às características, reagiram mal ao convívio no tubo ensaio. O de raio iônico avantajado, expansivo, ficou calado. Titânio no meio, fósforo na ponta e tensão no ar. Nenhuma substância agregadora. Márcio esperava adaptações. Tirou todo mundo e mudou a ordem. Bateu no liquidificador, espremeu e apertou na seringa. Na esperança de funcionar, ofereceu recompensas. Chorou, contou pra família e comentou com amigos. Tentou de novo. Jogou o material intransigente num balde de concreto. Adicionou água com gás, manteiga e goma. Tapou com cimento e foi embora. Quando voltou, abriu pra ver. Ambiente seco.

Repouso

Uma por minuto. Pra completar trinta, faltavam vinte. Dava tempo. Começou pelo Pai Nosso. Ave Maria, Salve Rainha, Glória ao Pai e Repouso Eterno. Desatento às mensagens, prosseguiu. Credo, Confissão e Sinal da Santa Cruz. Parou pra respirar. Ato de Contrição e Profissão de Fé. Possuído pela pressa, olhou no relógio. Tinha dez minutos. Novena ao Menino Jesus de Praga, Invocação ao Divino Espírito Santo e orações da Manhã, Tarde e Noite. Desesperado, disparou. Atropelou palavras. As cinco últimas, pra santos famosos, saíram de qualquer jeito. Pedro, Jorge, Antônio, Sebastião e Rita. Fim de papo. A beata, atenta, mandou repetir um monte. Não gostou da postura de Leonardo. Ficou puto. Em voz alta, dirigiu ofensas à orientadora. Criticou a instituição. Resmungou, implorou e, sem saída, voltou às preces.

Despedida

Não entrou na página de Carolina. Quer conhecer aos poucos, de acordo com a evolução natural da relação. Segurou o ímpeto. Na hora de clicar, num estalo, refugou. Pra não saber demais. Não revelar o passado, fotos ou frases escolhidas. Só quis lembrar. Do cheiro no pescoço e do gosto na boca. Do que disseram e ouviram. Pra garantir a descoberta gradual, descartou o acesso. Seria impróprio, improdutivo. Ficaria exposto aos ideais, amigos e comentários. Tiraria conclusões. Alheio às informações publicadas, imaginou o rosto com a cabeça. Cabelo, corpo e acessórios. Reconstituiu olhares. Pra ganhar intimidade, deu tempo. Conseguiu controlar. No próximo encontro, marcado na despedida, mata a saudade. Das teorias, sorrisos e movimentos. Da timidez e da tatuagem.