Menina

Conheceu uma menina bonita, gostosa, inteligente e maneira. Casou e agora, anos depois, considera a esposa feia, ruim, burra e chata. Mas estão juntos há muito tempo. Têm filhos, medo de ficar sozinho, preguiça. Vivem de maneira interessante no ponto de vista de quem vê de fora com bom humor. Tomam café de manhã cedo, conversam amenidades e se despedem com um beijo obrigatório. Quando se reencontram, o mesmo beijo e perguntas relativas ao ocorrido durante as respectivas ausências. Tudo em dia, acabou o assunto. Botam na novela e comentam passagens de interpretação óbvia pra não dar problema. Um ato falho e pronto: cara emburrada em cômodos diferentes.

Atriz

Roberta não serviu pra representar a menina má que arrancava o cérebro de viajantes distraídos. Procuravam uma atriz de beleza intermediária. Letícia, a quinta candidata, decorou as falas, caprichou no gestual e errou tão pouco que venceu a disputa. Pra desempenhar o papel de maneira satisfatória, tarefa difícil pra qualquer um, aprendeu muita coisa em pouco tempo. Depois de dançar, cantar e dialogar diante das câmeras, passou no camarim pra descansar. O pior estava por vir. Tomou um empurrão, caiu de lado, bateu com a cabeça na quina, levantou devagar, recuperou os sentidos e correu atrás da vítima. No fim, ficaram frente a frente. Letícia, com a arma na mão, chegou perto e aplicou um golpe que separou a cabeça do corpo. Colocou o pedaço menor numa caixa com alças. Mais calma, levou o carregamento pra caverna sombria e tirou os miolos de dentro do crânio.

Comida

Nunca fui dona de padaria nem trabalhei com compra e venda de imóveis. Não gosto de mato. Não tomo café com a família e só uso roupa colorida quando me pedem. Não sou a menina charmosa e cheia de manias que cai fácil no gosto pessoal de sujeitos bem encarados. Queria ser a pintora casada com o jogador de basquete. Teria filhos, pintaria quadros bem pintados e passaria a tarde toda dentro de casa. Tive que sorrir quando tava triste, matei quando tive fome e beijei um cara chato e sem graça. Mesmo querendo ir embora, fiz comida e brinquei com a criança esquisita que falava demais. A vantagem é que passei esse tempo todo escondida.

Queda

Os quatro pneus, constantemente submetidos a longas jornadas, queriam trocar de carro. As ultrapassagens perderam a graça e as freadas bruscas irritavam. Carecas demais pra idade que tinham, escorregavam na água e nas curvas fechadas. Rodaram repetidas vezes durante o período que antecede a noite e ficaram parados até o dia seguinte. Saíram cedo da garagem. Carregando o peso do motor, passageiros, lataria e acessórios, andaram com a cara amarrada e a cabeça cheia de frases prontas pra serem ditas ao motorista. O dianteiro esquerdo, à flor da pele, passou por cima do que não devia, foi trocado e jogado fora. Pego de surpresa, o substituto não esperava tamanha queda de qualidade de vida.

Aviso

Em respeito ao aviso estampado na parede, ligou o chuveiro no quente pra misturar o vapor com a fumaça e passou um tempo sentado na privada com a tampa abaixada. Voltou pra onde estava antes disso. Sozinho na cama, deu uma risada de verdade, das que fazem fechar os olhos. O corpo tremia sob efeito da clara manifestação de alegria provocada por um motivo qualquer. Pena que a sensação boa, não experimentada desde a última vez, sofra interrupções. Pensou numa situação desagradável a qual seria submetido num futuro próximo. Refletiu sobre o assunto, superou a questão e foi no banheiro de novo.

Janelas

É tão perturbado que desprezaria o lado de fora. Desligaria o telefone e não receberia visitas. Entre móveis parados e paredes pintadas de branco, perderia as festas e demais eventos que exigem presença física. Escaparia das mulheres, família, amigos, conhecidos e desconhecidos. De todas as paisagens disponibilizadas pela natureza, teria apenas o visual das janelas viradas pros mesmos lugares. Suportaria a falta de abraços, beijos e manifestações de carinho em geral. Não compartilharia olhares nem sorrisos. Reduziria drasticamente a possibilidade de sofrer acidentes. Pra se distrair, utilizaria aparelhos, abriria livros ou jogaria jogos feitos pra uma pessoa só. Não capricharia na aparência e dormiria até acordar por reação espontânea. Sem ninguém por perto, agiria naturalmente.

Grades

Escondida no meio do mato, desarmada e sem roupa, permaneceu em silêncio pra não chamar a atenção dos homens e mulheres que estavam por perto. Foi encontrada. Correu pro lado errado, entrou numa área cercada por grades intransponíveis e sentiu que seria complicado escapar. Das cinco pessoas, três ficaram de fora. O casal, experiente no assunto, efetuou a captura. Pega pelo pé e erguida de cabeça pra baixo, teve o pescoço cortado pela faca mais afiada que tinham. Ninguém fez nada pela vítima que se contorcia no chão com a ferida exposta ao sol. Terminado o serviço, saíram do local e foram conversar com o restante do grupo. Um cachorro, bem pequeno, de raça conhecida pelos donos, latia animado até perceber a seriedade da ocasião. Depois de ver a morte tão próxima, se assustou e parou de fazer barulho. Continua vivo porque não comem animais da espécie a qual pertence.

Bomba

Os transeuntes foram pegos de surpresa pela bomba lançada de propósito no terreno que ocupavam. A idéia de aniquilar o local, concebida por um cérebro específico, foi compartilhada e aprovada. Depois de definirem o dia e a hora do ataque, os responsáveis pela decisão voltaram pra casa. Segunda-feira de manhã. Pedro morreu dormindo, Cristiana acordada e, do resto do pessoal assassinado, uns estavam que nem Pedro e outros que nem Cristiana. Todos irreconhecíveis por conta do calor que fez de repente. As plantas, assim como os animais não humanos, também se queimaram a ponto de falecer. Caso fosse possível estar ao mesmo tempo vivo e por perto, o observador notaria de cara o excesso de poeira e o amontoado de coisa inanimada caída no chão. Para os criminosos, bem informados a respeito das conseqüências, tudo nos conformes.

Casal

Se beijaram quando um dos integrantes do casal já não fazia questão. O outro, grilado com o evidente desânimo, fez de tudo pra agradar. Puxou assunto, suportou cara feia e agüentou comentários passíveis de retaliação. Para que desse certo, mudou de idéia e ofereceu mais do que planejava. Nem assim funcionou. O representante do sexo oposto evitava encontros, abraços e conversas no pé do ouvido. Pensava sozinho, de boca fechada. Mantinha a postura que tanto inquietava a única parte interessada no prolongamento do convívio. Tinha duas formas de resolver o problema: falar com todas as letras ou agir de maneira esquisita pra dar a entender. Escolheu a segunda.

Paisagem

Todo mundo, tirando algumas pessoas, leva menos de dois minutos pra contar até cem. Ricardo é um exemplo. Além de reproduzir mentalmente a seqüência numérica do início ao fim, assovia de improviso, ouve música no rádio e canta junto quando dá vontade. Não tem muito o que fazer enquanto segue em frente por tempo indeterminado. Fica atento aos espelhos e às vezes repara na paisagem. Limitado ao trajeto entre lugares diferentes, aproveita as idas e vindas pra pensar na vida. Um dia precisou ir embora no meio da noite. Saiu debaixo das cobertas com os olhos pela metade, tomou banho e escovou os dentes. Não tinha ninguém pra acompanhar os preparativos nem pra ver o semblante triste de alguém que se esforça pra não chorar.

Boate

Júlio chegou derrotado na boate. Se ninguém falasse nada, teria ficado em casa, com a roupa do corpo. Mas foi assim: o telefone tocou e o rapaz confirmou presença. Como as melhores camisas estavam sujas, vestiu uma que diminuía a autoconfiança. No mais, calça jeans de caimento esquisito e um par de tênis brancos. Ficou pronto pra sair com cara de tacho. Já no recinto, propício ao desencadeamento de relacionamentos passageiros, ouvia a trilha sonora prometida pelos organizadores. Chegou pro canto e começou uma dança de baixo nível técnico. Por desencargo, deu uma volta de olhos abertos pra procurar alguém que se sujeitasse. Caso tivesse queda por homens mal vestidos, mal humorados, sem ritmo e não muito bonitos, a menina de saia branca largaria as amigas pra puxar papo. Não foi dessa vez.

Pedras

Saiu do zero mas não quis dar continuidade ao esboço que sequer existia até o surgimento. Achou o tema batido e sem graça. Pra criar um desenho novo, precisava de uma idéia especial. A goma, na boca, de tão mastigada perdeu o gosto. Caiu do céu, passou por baixo da língua e parou entre a bochecha e os dentes. A inspiração chegou enquanto a roteirista pegava mais um chiclete na bolsa. Imaginou a vida no corpo humano. Escreveu diálogos entre células nervosas, cenas do fígado reclamando de sobrecarga e do estômago cheio do intestino. Nas artérias, sangue correndo pra chegar a tempo no coração ansioso. Mostrou os músculos zombando das gorduras e os pulmões cansados de respirar. As pedras, nos rins, não perceberam o aumento súbito da pressão. Na estória de Mariana, a moradia dos personagens desaba com os habitantes lá dentro.

Buracos

Ligado na tomada, o ventilador antigo reagiu de maneira diferente. Tatiana então puxou o fio, deu uma olhada na ponta e botou os dois pinos de volta nos dois buracos. O aparelho, paradão, tinha perdido as forças. Apesar do inevitável abandono, o objeto inanimado não sofreu. A dona é que lamentou a perda. Principalmente porque o eletrodoméstico não tinha substituto e já era tarde para aquisições do gênero. De calcinha e sutiã, deitou suada no lençol que grudava. Rolava, abria as pernas e afastava os braços. Ficava de bruços, de frente, de lado. Queria muito substituir o desconforto pelo limbo experimentado por quem dorme. Demorou um tempo.

Desgaste

Feliz da vida por, entre outras coisas, ter aprendido a respirar pela barriga, resolveu fazer as pazes com a própria mente. Primeiro investiu na idéia de que lidava com uma segunda pessoa. Depois prometeu que, como amigo de verdade, seria mais tolerante e solidário. Pra se sentir melhor, propôs um acordo de redução das cobranças e ampliação da boa vontade. Garantiu apoio nos lapsos, brancos e bobagens. Em troca, pediu empenho e concentração. O interlocutor fictício, surpreso com a nova postura, entrou no clima. Disse que seria cuidadoso em relação aos pensamentos e admitiu sua parcela de culpa pelo desgaste. Dali em diante, deixariam frases e vacilos de lado. Um completaria o outro.

Pacote

Dormiu enquanto inventava desculpas com pouca variação no quesito grau de convencimento. Agora vem o mais tenebroso: uma caixa de papelão cheia de brinquedos velhos fechada com fita transparente. Boneco sem perna, carrinho quebrado e baralho incompleto. Também tinha um tabuleiro manchado, notas sujas de mentirinha e uma bola furada. A criança, escondida, de madrugada, foi de mansinho até a garagem. Arrastou a mesa, levantou a cadeira e, com a ponta dos dedos, alcançou o pacote que puxou de pouquinho em pouquinho até a inevitável queda. Sentou no chão com pressa. Sozinho no escuro, catou os objetos inúteis e guardou direitinho pra não dar bandeira. O nervosismo tomou conta quando a fita acabou.

Guilhotina

Prestes a ter a cabeça arrancada pela guilhotina, Ademar teve uma idéia inútil. Pediu ajuda de boca fechada. Pra Deus. A figura simbólica, carente de constituição física, não bate palmas. Falta pé, perna, braço e barriga. Pedras e tiros, caso disparados, passariam direto. Não come e não respira. Ainda assim, inativo, ausente, faz diferença. Foi a última esperança que morreu no caso de Ademar. Alvo de súplicas até o instante fatal, quando a lâmina gigante passou pelo pescoço e dividiu o corpo em dois pedaços desproporcionais, permaneceu trancado no imaginário da vítima. Nem cheiro de carne ou osso.

Visita

Comprou chocolate, morango e leite condensado. Ansioso pela chegada da visita, quis deixar tudo pronto pra iniciar os trabalhos imediatamente após a primeira troca de olhares. Cama no esquema, cueca nova e cabelo cortado. Demorou um pouco mais no banho e fez a barba. Motivado pela promessa de boa noite, deu um jeito na sala e tirou as tralhas do caminho. Um dia antes, na volta pra casa, já tinha pensado em todos os detalhes. Chegou a hora. E nada de campainha. Com dificuldade pra distrair a mente focada no que faria no momento chave, passou o tempo entre uma opção ou outra. De repente, ouviu barulho de gente andando pelo corredor. Levantou do sofá e abriu a porta.

Velho

Largou o branco de tampa azul porque nunca mais viu disponível. Um novo, parecido, passou a ser utilizado. O mal é que não tem a mesma eficiência. Comprovada, a qualidade do antigo jamais permitiria que tal incômodo viesse à tona. O efeito indesejado surgiu de repente. Devia ter desconfiado. Reconhecido o erro, botou na cabeça que acabaria com a saudade e saiu atrás do velho e bom. Quando finalmente bateu o olho no ex-companheiro, de acabamento e traços inconfundíveis, sorriu por dentro. Não precisou dizer nada.

Espaços

Além de ocupar espaços, a tal estrutura física reage a estímulos e toma decisões. Por conta própria, de acordo com a superfície em que se encontra, é capaz de correr, andar ou nadar até qualquer lugar de possível acesso. Utiliza veículos pra chegar mais rápido. Diante de espelhos, exceto pela presença de defeito específico, enxerga a si própria. Cabe em locais vazios e cheira mal quando não submetida a sessões periódicas de limpeza. Sempre sujeita ao resultado prático de atividades involuntárias, troca um gás pelo outro e aperta as unhas contra os dedos. Começa a falhar ao longo do tempo.

Fotos

A agenda, dedicada ao amor que sentia, fica guardada junto com a coleção de fotos e cartões de aniversário. Na época, nem imaginava que um dia precisaria justificar o preenchimento das páginas. Só vontade mesmo, pura e simples. Não faria de novo por motivos óbvios. Está mais velho. Se por acaso cismasse de escrever todos os dias durante um ano, teria que mudar de assunto pra não parecer neurótico. Além do mais, já não liga tanto assim pra esse tipo de coisa. Até procura ficar por dentro das novidades, dá palpite e tudo. Mas a paixão diminuiu. Não adianta insistir. Sabe que o papel em branco continuaria na mesma.

Desenho

Mesmo insatisfeito com o desenho atual da própria face, dispensou cosméticos e barbeadores. Cabelo e roupa, apesar de reprovados, permaneceram intactos. Aproveitou o embalo pra não tomar banho nem escovar os dentes. Pelo menos progrediu no quesito higiene mental. Substituiu as falsas esperanças pelo desleixo, que, embora traga mazelas, é uma opção válida diante das circunstâncias. Bem humorado, negou o desodorante que ofereceram e saiu de chinelo com as unhas por fazer. Encontrou quem não queria. Quando pensou em disfarçar, já era tarde. Deu um sorriso amarelo, dois beijinhos no rosto e até que tentou, mas não evitou o abraço.

14

O 14 começou a aparecer na medida em que os jogos entre Abelardo e o sobrinho eram mais freqüentes. Produtividade acima da média, o fora de série também se destacava pelo desdém com que concluía as jogadas. O mais comum era receber na intermediária, avançar um pouco e já aplicar o golpe de misericórdia, na gaveta. O disparo contra a meta, por associação com armas de fogo, foi chamado primeiro de tiro. Uma pitada de inglês fajuto e virou "tairo". O talento do craque era tão grande que o tio também entrou no clima de exaltação ao atleta controlado pelo menino. Volta e meia, narravam juntos o gol que acabara de sair: "um taaaairo do 14!".

Peixes III

Os animais de estimação, reunidos acidentalmente na época em que o conceito sequer existia, perceberam que era hora de tomar uma atitude. Nem sinal de predadores e caçadores no campo visual do cachorro, do papagaio e da tartaruga. Estavam a sós. Acostumados a fugir do perigo, conviveram pacificamente por motivos óbvios: para mamíferos sem asas e inteligência, fica difícil capturar um papagaio. Também não comem tartarugas, que, assim como as aves, não se alimentam de cães. Com nenhuma falta de apetite, vigiaram a beira do rio na esperança de surgir alguma presa fácil. Citaram os peixes. Papo vai, papo vem, um foi concordando com o outro até o penoso abrir o bico pra falar besteira. No fim, resolveram atacar. As futuras vítimas, ainda dentro d’água, nadavam. O cachorro pulou de barriga enquanto o pássaro indicava a rota. Réptil na retaguarda.

Tráfego

Em baixa velocidade por conta do tráfego à frente, cedeu à curiosidade do carona e puxou assunto: quanto custa esse negócio? Cesário, vendedor obstinado, deu o preço enquanto caminhava rapidamente em direção ao veículo. Diante da negativa do possível comprador, ofereceu um desconto de 50%. Estavam bem próximos, separados apenas pela porta do carro. Um de pé, andando, e o outro sentado, dirigindo. Continuaram o diálogo. Faço por dez. Não, não quero. Cesário jogou a mercadoria pela janela, no colo de Jair. Procura a grana aí no porta-luvas, dentro do cinzeiro. Correndo e suando, Cesário insistia: você deve ter, olha na carteira. Jair, impressionado, devolveu o produto e acelerou.

Festa

Não havia paredes além das que cercavam a estrutura de metal suspensa por cabos de aço extremamente resistentes. Os dois, lá dentro, aproveitaram o tempo livre para se divertir fora de casa. Compreensivelmente satisfeitos por terem ficado presos entre os andares, saíram de mãos dadas assim que abriram as portas do meio de transporte vertical. Uma caminhada rápida e já estavam de volta ao lar. Carinho aqui e ali, foram incapazes de resistir à hora de trocar de roupa e acabaram tirando o atraso da cabeça. Tinham uma festa pra ir. Vestido longo nela e uma calça qualquer nele. Despistaram os vigias e repetiram a dose numa área aparentemente deserta. Ausência pouco notada, voltaram pro convívio social sem alarde. Cadeiras lado a lado.

Olhos

Reparando com bons olhos nos detalhes de sempre e tomando conta da própria cabeça. Recorrendo ao velho modo de agir. Soltando o riso de criança, cantando em voz alta e andando rápido, sem descanso. Agora no gerúndio. Viver pra ser feliz em frações de segundos e continuar presente entre o verde das plantas e o azul do céu. Perseguido pela visão pessimista. Distraído pela versão mais simples e suave das opções, perdido no meio dos antigos sonhos e calado com a boca aberta. Dizendo não ao apego pelos comprovantes e aprovando o consumo em massa de canções de alta qualidade.

Gramas

Um pedaço maior do que o outro, emparelhados. A disparidade ficou evidente: 50 gramas contra uns 38, no máximo. Independentemente das controvérsias, o que vale é a honestidade de quem divide. A sua tá em cima da mesa. Não apresentado à metade bem servida, que ficou pro repartidor, o dono do resto catou o pouquinho e ficou decepcionado com a suposta falta de matéria-prima nos arredores. Antes da crise vinha mais, dava pra distribuir entre as visitas e garantir o consumo diário sem preocupações. O responsável pela separação, já acostumado, sentiu o peso na consciência mas não deu o braço a torcer. Disse que tava difícil arranjar, que tava ruim pra todo mundo e que também passava dificuldades. Se agisse bem sob pressão, Gilmar teria questionado o trapaceiro.

Três

Das três, duas desistiram e uma nem apareceu. A primeira era tão perfeita que só resolveu participar depois de um longo processo de convencimento. Usava calça jeans e camisa cinza. Com início promissor e final melancólico, foi quem esteve mais perto. Fica pra próxima. Já chegou interessada na oportunidade e não fez por menos. Beneficiada pelo trauma adquirido com a experiência anterior, logo conquistou espaço. Não tinha jogo de cintura, mas estava disposta a adquirir. Agendava encontros dispensáveis e participava de bate-bocas. Mesmo assim, deixou saudades quando resolveu abandonar o barco. Terceira chance. Para a parte interessada, os telefonemas e recados sugeriam um desejo mútuo de concretização. Nada explícito.

Chuveiro

Tenho que varrer tudo lá pra fora e nunca mais deixar chegar a esse ponto, pensou Jorge com outras palavras. Repetidas vezes. Em seguida, tirou a mão do rosto e desligou o chuveiro. Apesar de não premeditada, a concentração foi tão forte que de repente recebeu o aviso de novo. Da própria boca, em voz alta e língua estrangeira. Um tempo parado pra entender. Poucas vezes demonstrou tamanha lentidão para se secar e trocar de roupa. Queria mesmo supervalorizar o episódio, memorizar cada detalhe. Passado o momento supostamente mágico, começou a agir em prol do raciocínio. Foi membro ativo de conversas desnecessárias, levou os filhos na escola e executou tarefas entediantes com entusiasmo. Pretende continuar fiel à conduta porque parece o certo a se fazer.

Lembranças

Passa por cima de todo mundo porque é genial em determinados momentos. Por conta do talento específico, possui a confiança típica de quem guarda as respostas na ponta da língua. Geralmente é perdoado e despreza novidades não atreladas ao próprio nome. Isento de culpa pelo fracasso alheio, joga tudo na cara e espera reações adequadas ao que tem em mente. Enxerga os próprios defeitos, sofre e tudo o mais. Quando se esquece, aponta deficiências de pessoas improdutivas que falam por falar. Não tem dúvida de que as lembranças ficam resumidas ao que interessa.

Coleira

O nome mesmo é Valter. Tomada é o apelido. Eletricista da área, comprou um cachorro mas tá inseguro porque tem medo de que a escolha influencie negativamente no bem estar do animal. Cara e coroa. Caiu o que não queria. Pensou melhor e chegou à conclusão de que algo tão importante não deve ser decidido assim. Para o quadrúpede, só importava o que vinha pela frente. Aproximou-se do elemento sólido com aroma diferenciado, pegou e mastigou. Enquanto isso, Valter começou a pesquisar. Convencido pela incidência de vira-latas abandonados, finalmente resolveu executar o procedimento. Saiu com a coleira na mão e capturou o companheiro. Antes de começar a latir com olhar fixo no objeto cortante, coçou a lateral do corpo e fez força pra andar em outra direção. Não adiantou. Dá pra perceber que, apesar de irracional, agora fica um pouco mais triste quando brinca com o filhote dos outros.

Plano

Saiu dos pulmões e passou pela garganta antes de ser detectado pelo aparelho criado para identificar infratores. Por pouco não escapou. O emissor da substância, obrigado a respirar pela boca, vinha em baixa velocidade e mantinha as mãos no volante. O plano era jantar com a esposa e buscar a sobrinha logo em seguida. Restaurante chique, uma taça de vinho pra cada um. Fecharam a conta e deixaram o estabelecimento civilizadamente. Parou no sinal fechado, abriu passagem pro motorista metido a piloto e ligou a seta pra mudar de faixa. Depois caiu na fila de carros que começava em frente ao clube de dança. Amparados por força maior, dois homens armados fizeram o mesmo sinal. Teve que descer. Mesmo contrariado, contou como vinha sendo a noite e esbanjou argumentos favoráveis ao não cumprimento das ordens. Fim de papo. A menina, toda arrumada pra festa, ficou em casa.

Quadrinhos

Dado o pontapé inicial, só tem certeza do fim. A conjuntura é a seguinte: câmeras ligadas. Precisa fazer alguma coisa enquanto pensa. Deixou a criança engatinhando pela casa. Pra não ficar chato, pediu pro menino bater a cabeça de vez em quando e fazer outras gracinhas do gênero. Precisa adiantar o processo. Dividiu em tópicos: jeito de falar, estilo de roupa, gosto musical, profissão e lazer. Incluiria os demais ao longo do percurso. Quando se deu conta, Tiago tinha voz grave e usava camisas coloridas. Gostava dos sucessos que tocavam na rádio e de esportes em geral. Criatividade em baixa, botou o moleque pra estudar. Todo mundo vendo tudo. Próximo passo: aulas de natação, ginástica, inglês e violão. Graças ao roteirista, tomou gosto por quadrinhos. Isso aos 30, 31. De repente empacou. São muitas alternativas e idéias vagas. De qualquer forma, o protagonista continua em cena. Também existem as comidas típicas, jogos de tabuleiro e o que mais aparecer de bom.

Susto

Foi na rua e trouxe meia dúzia. No susto, jogou tudo no pote de remédios. Não conseguia mais distinguir um comprimido do outro. Como eram poucos em relação aos demais, seis de 50, tentava a sorte a qualquer hora do dia. O primeiro causou efeito comum aos estritamente medicinais. Segundo, terceiro, quarto. Começou a consumir mais rápido do que devia. Mais 12 e passaram a ser 34 pra cinco, depois 23 pra quatro e por aí vai. Como a probabilidade de pegar um premiado cresceu consideravelmente, ficou com medo de continuar no mesmo ritmo. Tinha compromissos profissionais, encontros casuais e um futebol no fim de semana. Não resistiu e partiu pra roleta russa de novo. Nem se lembra direito como foi. Três pra um. Dois. Lado a lado na palma da mão. Pra não ter erro, incluiu ambos no mesmo gole.

Letra

Escutou a música com atenção quase exclusiva na letra. Bem pensadas, as palavras caiam tão bem na melodia que parou de se movimentar aleatoriamente. O pessoal nem reparou. Dançavam distraídos a ponto de ignorar a evolução espiritual de uma pessoa confusa que aos poucos fica mais tranqüila e contente. Estavam interessados no ritmo. Poucos amigos por perto, continuou focado. Terminadas as primeiras estrofes, os músicos começaram o instrumental pra preparar a chegada do refrão. Um gole de qualquer coisa e se ajeitou pra cantar junto a única parte que sabia de cor. Se todos estivessem em silêncio, ouviriam facilmente a voz dispensável. Acompanhou o dedilhado final até os últimos acordes. A composição seguinte, em inglês, causou outro tipo de impacto.

Calhas

Aos poucos, caem as calhas do teto da casinha que fica ao lado do morro mais íngreme da região. Falo de calhas sagradas. Toda a água que escorre pelos dutos é impura, apesar de completamente livre de macro e microorganismos. Não potável, como sempre foi, a combinação entre uma molécula de oxigênio e duas de hidrogênio possui a companhia de ingredientes capazes de impedir que os pobres consumidores possam defecar ou urinar novamente. É estranho, mas a maldição não afasta os curiosos do outro lado do monte, que levam três dias e duas noites para atravessar a elevação do terreno. Como resultado do consumo irracional, surge um povoado composto por cidadãos de bem, embora imundos por dentro. O paradoxo jamais foi alvo de estudos acadêmicos ou alternativos. Sem saída e conseqüentemente propensos a acreditar em qualquer coisa, os contaminados sonham com o dia em que as calhas finalmente toquem o chão.

Apito

Havia um caderno de capa cinza dentro da sala de aula, bem longe dos corneteiros que permaneciam perfilados só esperando o apito. O constrangimento estava no ar porque o responsável pelo estímulo sonoro precisava do conjunto de folhas pra dar a largada. Nesse meio tempo, os músicos experientes conversavam com os mais novos sobre as idas e vindas de uma bola de metal utilizada em fliperamas. Assim que chegou com as partituras, pediu licença aos comandados para em seguida sinalizar o início do festival. As crianças perseguiam umas às outras em alta velocidade. O time de preto, mais bem treinado, logo abriu vantagem com uma jogada ensaiada durante os recreios da semana. Na arquibancada, manifestações comuns e encontros que começavam ansiosos pela despedida. Os tios torciam pelos sobrinhos, os pais pelos filhos e a banda não parava de tocar.

Ruas

Ciente de que chegou numa hora ruim, o dia seguinte fez de tudo pra passar despercebido. Manteve o clima estável e as ruas desertas. Com baixo índice de ocorrências relevantes, acolheu de maneira exemplar o mal estar causado pela véspera. Só lamenta o fato de não ter ido além. Depois de sonhar com grandes jogos, frases de efeito e viradas de mesa, caiu na real quando percebeu que o pessoal não estava pra brincadeira. Reclamavam da sorte e trabalhavam em grupos para amenizar as conseqüências. É claro que um ou outro levou vantagem com o desenrolar dos fatos. Não afetados pelo drama alheio, puderam aproveitar o período como se nada tivesse acontecido. O dia, solidário ao sentimento predominante, prosseguiu focado no lado negativo da coisa. Nem um minuto a mais ou a menos. Meia noite em ponto, juntou os trapos e foi embora sem graça.

Zero

Estava com pouco dinheiro pra mandar o telegrama. Eufórica, demorou a entender que, nessas horas, escrever é contar palavras. Te amo. Depois ficou na dúvida, mas já tava feito. Nada de chegar o telegrama de volta. Juntou uns trocados e foi aos correios na semana seguinte. Me ama? Quase indiferente ao silêncio, toca o telefone. Mais um encontro. Olhos nos trejeitos, velhas manias. Foi aí que Aline percebeu a própria insanidade e optou por acabar com a brincadeira. Mais um telegrama. Só que dele pra ela. Luciano queria detalhes. Sem grana pra explicar a mesma coisa de um jeito diferente, decidiu só calcular o prejuízo depois que o texto ficasse pronto. Queria deixar claro que não valeria a pena por causa disso e daquilo. Dois rascunhos, inspiração zero. Se esforçou, pensou, puxou pela memória. Pra resolver tudo de uma vez, deixou pra lá.

Bala

De propósito, acertou a si próprio com uma bala de verdade. Depois disso ficou parado esperando pra ser conduzido aos locais de praxe. Dois dias seguidos de abandono. Sem reclamar de nada, foi carregado no colo, higienizado e levado até o carro de aspecto sombrio. Janelas abertas, não sentia o vento nem ouvia o barulho. Nenhuma palavra durante todo o trajeto. Cuidadosamente retirado do veículo, mal sabia que seria exposto à companhia de parentes e amigos. Olhavam um pouco, saiam de perto e voltavam. Fim das formalidades. Viraram as costas pela última vez. Culpam erros, inércia e divergem quanto ao posicionamento de Luís no momento do disparo. Um palpite. Deitado com a cabeça apoiada no braço do sofá. Ventilador no máximo e música de fundo. Pouca luz.

Rita

Rita era gostosa, mas depois piorou muito. Nos bons tempos, quando esbanjava consistência e leveza, chamava tanto a atenção que era comum ser agraciada com mimos grosseiros. Colecionava convites indecorosos e propostas indecentes. Sucesso em praias, piscinas e boates, não esperava pelo pior. A decadência começou cedo e prosseguiu firme até o fundo do poço. Guarda-roupas trocado, mais maquiagem, menos impacto. Saiu de casa apressada. Depois de uma passagem monótona pela rua principal, comeu quase um quilo e pagou logo a conta pra não perder a hora. Morais havia exigido o exame de gravidez, e lá foi ela, mesmo menstruada.

Vidro

O muro alto equipado com cacos de vidro impede as investidas noturnas de Gilberto, jovem de estatura mediana. Vive pelos corredores e atrás das portas. Seja onde for, está sempre atento, tentando ouvir o que dizem pelos cantos. Os mais intolerantes se referem ao rapaz de cabelos curtos como alguém nascido no país que tomou Pequim em 1215. Carlos tem dinheiro, mas não sabe viver. Roberto é arrogante. Jorge é safado. Claudinha é triste. Só vira a cara quando o assunto da vez é a mulher de seus sonhos. Magrela, corcunda, chata, tagarela, não importa. Marta tem que ser dele. Humano obcecado é inconseqüente. Deixou as flores no quarto da moça e ficou ainda mais longe. Marta dispara: não quero você. Humano obcecado é insuportável. Escreve poemas, se declara, chora. Marta não agüenta mais. Gilberto, obcecado, continua.

Pressão

Feita sob medida pra funcionar sob pressão, vê com maus olhos a possibilidade de ser lançada em alta velocidade contra anteparos resistentes. Isso sem contar os dois principais riscos: afogamento e perfuração de cima abaixo. Tudo depende da boa vontade alheia. Retirada da prateleira juntamente com a garrafa, experimentou a última das sensações. Não tinha como escorregar sozinha pelo gargalo antes do contato físico. Se possível, teria subido pelas paredes, desenvolvido um sistema eficaz de amortecimento e pulado de costas. Está morta e jogada no lixo. Sentiu dores desde a primeira fisgada na cabeça e em cada um dos giros em direção à base. Antes de apagar de vez, ainda sofreu com o movimento inverso do aparelho. Nenhuma gota de sangue ou lágrima. Um buraco. Pensou em proteger o corpo com material utilizado em capacetes de qualidade. Tentou se esquivar, confundir o algoz de alguma forma. O final seria surpreendente em caso de queda. Ao contrário do que imaginava, precisaria apenas boiar, tarefa viável para objetos cilíndricos de baixa densidade.

Cinzas

Ninguém sabe, ninguém viu, mas há manuscritos que comprovam metaforicamente a saga de Zé. Surgido das cinzas em meio ao silêncio provocado pela falta de iniciativa, assumiu o controle da situação. Além da concorrência fraca, a tarefa jamais assustaria alguém tão capacitado e emocionalmente apto. Começou pela criação de um espaço físico capaz de abrigar os diferentes tipos habitantes que tinha em mente. Muito seguro de si, definiu os tamanhos e cores por tentativa e erro, usando como referência a reação espontânea diante de cada possibilidade. Sempre que pensava algo de bom, colocava imediatamente em prática pra ver no que ia dar. Trabalhou sossegado, sem ninguém por perto pra atrapalhar. Os imprevistos foram resolvidos com naturalidade e o acabamento ficou melhor do que o previsto. Serviço entregue antes do prazo. A partir de agora, precisa apenas vigiar e penalizar os favorecidos de acordo com a conduta adotada em relação à estrutura disponível.

Calcinha

Nem liga se você está de calcinha ou cueca. Desprovido de libido, dispensa qualquer modalidade de sexo e romances em geral. Até existem rumores sobre relacionamentos físicos dos quais tenha participado, mas são desencontrados e merecem desprezo. De comprovado mesmo, só os beijos no rosto e abraços nos amigos. Chegou animado na festa. Conversou amistosamente com o pessoal, bebeu à vontade e deu uns tragos pra não passar em branco. Manteve-se quieto quando o assunto eram capas de revistas masculinas. Entre as meninas, retraiu-se discretamente durante o papo cabeludo que tiveram perto do bar. A verdade é que gostaria muito de ter alguém pra conviver pacificamente e jantar a dois sem a obrigação de transar. Rejeita promoções para aquisição de canais adultos e mantém distância de bordéis e similares. Depois de tanto tempo, nem sente mais falta.

Branco

O branco foi tão intenso que está com medo de acontecer de novo. Atormentado pela infeliz seqüência dos fatos, busca uma justificativa convincente para tamanha imperícia demonstrada diante das circunstâncias. Tinha um monte de gente falando alto, um cara magro de óculos mais pra trás e quatro pessoas paradas do outro lado. Começou a agir sem pensar, na esperança de as coisas darem certo por acaso. Depois veio uma mulher de 42 anos muito irritada com o desfecho do episódio. De tão coberta de razão que estava, esbravejou durante uns dez minutos, mesmo tendo sido apoiada desde o início pelo fragilizado interlocutor. Nada de saudações ou cumprimentos antes de partirem cada um pro seu canto. Para alívio do rapaz, o dia finalmente pôde prosseguir como de praxe. Elaborou alguns exemplos de condutas mais adequadas e aproveitou a deixa pra exercitar a capacidade de esquecer pessoas.

Rumo

Estava achando o livro tão chato que resolveu ler rápido. Passava por cima de um personagem ou outro, ignorava as características de determinado vilarejo e andava sem rumo em direção ao próximo capítulo. Mantinha respeito à sinalização ortográfica e só. Apesar de não captar a intenção do autor com o conjunto de palavras que ficavam pra trás, sentia prazer em passear descompromissadamente pelas páginas. Se bem que, verdade seja dita, até se interessava um pouco pelas linhas referentes à conturbada relação entre os protagonistas. Ele, mais novo e obcecado, não sabia como reagir ao mau humor gratuito esbanjado por ela nos momentos de lazer que não envolviam sexo. O pior era resgatar o fio da meada depois de dias longe da narrativa. Várias pessoas e lugares eram simplesmente citados, ao invés de reapresentados ao impaciente leitor acostumado a desprezar termos desconhecidos e notas de rodapé. Quando lia em casa, deitava de lado com o volume apoiado na cama. Trocava de posição freqüentemente. Dormiu bem, mas logo acordou com a cara apontada para o algoz de capa branca. Chega. Sentou direito e reiniciou a atividade com os olhos arregalados. Como não tem coragem de pular os parágrafos, acelera o processo do jeito que dá.

Corpo

Aquele cheiro que não gostava de sentir quando era criança agora sai do próprio corpo. Antes de assumir a responsabilidade pelas aparições do aroma, fingia que nem era com ele e atribuía o inconveniente a uma coincidência provocada pela má conservação de roupas velhas e toalhas usadas. Muito calor, ventilador fraco, resolveu ficar pelado. Não teve pra onde correr. A fragrância que expulsava pelos poros batia exatamente com o odor repugnante do qual preferia manter distância. O mal estar extrapolou o aspecto sensorial. Só não saiu desesperado atrás de um médico porque, do jeito que é, ficaria envergonhado de revelar tal particularidade a um estranho. Passou então a evitar lugares fechados e abusou dos produtos químicos capazes de amenizar o efeito do suor. Apesar de jamais ter ouvido reclamações relativas ao perfume exalado, deixou de praticar esportes de contato e mantém os braços paralelos ao tronco.

Obstetra

Enquanto as aves se deslocavam em direção ao norte, várias atividades eram exercidas no andar de baixo, como corridas de curta distância e brincadeiras de mau gosto. Respirou fundo e fez força até a morte. Segundo consta, o erro seria evitado caso o obstetra tivesse abstraído os problemas pessoais surgidos minutos antes da cirurgia. Marinheiro fracassado, que pegava na proa quando deveria pegar no leme, o desmotivado doutor gostava de cinema. Desde pequeno ia à locadora da esquina para bater papo com o balconista e pegar os melhores longas da prateleira. Eram sete por semana: duas comédias, dois desenhos animados, dois de aventura e um de terror. Se apegou aos romances e suspenses depois de velho, quando já sabia muito sobre roteiros, fotografia, direção e elenco. De vez em quando assiste a filmes ruins porque se diverte dando pitaco em tramas mal acabadas.

Lixo

Uma pessoa que não pára de chorar acaba tendo que coçar os olhos. Ocupada com o transbordamento das emoções, não consegue jogar o lixo fora nem amarrar os sapatos. Perde interesse por saias curtas, rejeita competições televisionadas e deixa livros em segundo plano. Incapaz de manter a compostura, larga os pertences em cima da mesa. Não pára de fazer combinações mentais que geram resultados decepcionantes. Esquece os argumentos contrários ao derramamento e, descansada, senta no chão. Mãos no rosto. Dependendo do gosto pessoal, fica em pé, parada. Não vê o tempo passar e ignora o barulho lá fora.

Vento

Pendurada do lado de fora ao bel prazer do ar em movimento, secava. Para evitar contatos físicos e conversas sem pé nem cabeça, chegou um pouquinho pro lado e fingiu que estava dormindo. A tarde de sol não tinha nada demais se comparada com as outras. O quintal, que poderia ser descrito em pormenores, abrigava todas as peças momentaneamente indisponíveis. Mas aquela era especial. Disputado a peso de ouro pelas irmãs e irmãos, o objeto unissex judia dos concorrentes sem pestanejar. É bajulado à exaustão e só lamenta o fato de nunca ter descanso. Seja na festa de formatura ou no churrasco da esquina, está sempre estampado no peito de algum representante da família. A utilização intensa, que gera repetitivos ciclos de recuperação, diminui significativamente o tempo de vida do acessório. Meio sem jeito, caiu na grama. Está disponível para quem chegar primeiro.

Quadro

Enfurnado em casa há mais de uma semana, cismou que estava cercado por fotografias. Cada cômodo era uma. Entrou na cozinha e, com a mão apoiada na parede, esticou o pescoço para ver a sala. Disfarçou e olhou de novo só pra confirmar. Tava certo. Da cozinha andou pelo corredor até o imóvel quarto cheio de tralhas imóveis. Saiu e entrou de novo. Desta vez agachado, na esperança de mudar alguma coisa. Constatou que nada, além dele próprio, havia se mexido. Armários grudados nos cantos, lembranças dentro dos armários e roupas no chão, perto da porta. Levantou da cama para abrir a janela. Entrou no retrato do banheiro, lavou o rosto e saiu pela porta da frente. Bastou botar o pé na calçada para perceber que não faria diferença ir na loja da esquina ou correr pro ponto de ônibus. Deu a volta no quarteirão pra confirmar.