Comédia

Nesse dia, suportou menos. Mandou o amigo embora, a mulher sumir e o filho, caçula, brincar na rua. Faltou o trabalho. A teoria, que compunha, deixou de lado. Fez alongamento, chutou móveis e mal comeu. Viu o início da comédia sobre baleias. Acordou com raiva de ter perdido o final. Tirou o telefone do gancho e, no diário, escreveu o que houve. Engasgou no começo. Entre desconhecidos, andou só pelo bairro. Pensou nos motivos e possibilidades. Chorou tanto que, num soluço, engoliu seco. Parou na padaria. Três pães, um suco e a conta. Comeu na sala. A criança, cansada, voltou pra casa. Obrigou a tomar banho e botou cedo na cama. Sem história.

Morte

Facilitou a vida. Diminuiu a carga, abaixou o volume e prestou atenção. Viajou no processo. Pra conseguir, corta em pedaços. Objetivos menores, adequados à disponibilidade e às condições físicas e mentais. Cansado, desiste. Insiste quando tá empolgado. No íntimo, sente que dá certo. Percebe a qualidade dos fluidos. A tática é igual. Primeiro concebe. Mentaliza, repete e materializa. Às vezes esquece, falha e se complica. Pára e pensa pra começar de novo. Conserta. Entre descansos e ações, erros crassos e tiros certos, enxerga as peças que encaixa. Aceita quando dá errado. Entende que, tirando a morte, nada é fatal.

Posse

Precavido, deixa um na carteira. Pra garantir. A tática, adotada por segurança, evita transtornos. Optou pelo método quando se arrependeu. Ficou na vontade. Não é que consuma sempre. É a sensação de posse, permanente, que justifica a estratégia. Quando quer, pega e usa. Faz escondido pra ninguém ver. Pra evitar imposições, grosserias e punições. Perguntas e conselhos dados por quem condena. Há quem goste. Num povoado tolerante, faria às claras. Dividiria com quem quisesse.

Pântano

O túnel, incomum, tem duas saídas. Uma logo à direita e outra no fim. A da direita, perigosa, dá pra um pântano com areia movediça e monstros arredios. A vantagem seria o abandono imediato. Passaria pelos perrengues e, adiante, alcançaria a área arborizada e habitada por pássaros cantantes. Se continuar em linha reta, sai pela frente. Direto no campo florido. Só que tá longe e tá com pressa. Abomina o ambiente mal iluminado. As pernas, atacadas por câimbras e estiramentos, reclamam de maus tratos. Cansaram de dar passo em falso.

Cabo

Acreditou no inexplicável quando o boneco sumiu. De repente, no quintal. Do dia, em busca do herói, não esquece. Nunca mais viu. Tempos depois, entrou em desespero por uma peça de plástico. Não achou. Angustiada, orgulhosa e insistente, demorou pra admitir o desaparecimento eterno. Provada a possibilidade de que algo tão estranho aconteça, tão despropositado, resignou. Por último, faz dias, um cabo curto. Não sabe pra onde foi. Olhou nos cantos e pra baixo. Afastou almofada, abriu gaveta e mochila. Tá preparada, pelos antecedentes, pra perder pra sempre.