Castelo

Mudou de idéia. O que faria, chato e previsível, deixou de lado. Concebeu novos personagens e aventuras. Diana seria prisioneira no castelo do mal e Davi compraria remédios. No enredo atual, ficam na espreita. Ana, que esperaria João, agora sai pra encontrar a prima. Falam sobre encantos e percalços. Volta feliz e, morta, dorme cedo. As sobrinhas ganharam destaque. No contexto reformulado, focado no tio, aparecem mais. Melissa saiu da história. Entraria com estilo na festa. Roupa nova, maquiagem bem feita e cabelo macio. Seria bajulada por Evandro e dançaria com Pedro.

Alvo

O soco na cara, desferido de propósito, derrubou Reginaldo. Ficou mal. Achou que estavam bem. Na despedida, cordial, pregou respeito. Disse que eram amigos. Pra machucar mais, calculou a distância. Ajeitou o corpo, preparou e apontou. O alvo, região central da face, foi atingido com sucesso. Caiu no chão. Levantou possesso e, por instinto, quase revidou. Desistiu. Refletiu e lamentou. Viu, na covardia, descompasso. A raiva virou decepção que virou desprezo. Em silêncio, doído, absorveu o golpe. Passou a borracha e parou de escrever.

Amizade

Mergulharia na cabeça e rearranjaria miolos. Puxaria pro lado que aprova. Diante da impossibilidade de aplicação do artifício, argumenta indefinidamente. Cansa e chateia. Explica, repete e comenta. Desqualifica. Condena opiniões diametralmente opostas e, pra convencer do contrário, elabora respostas. Procura brechas e explora escorregadas. Quer um filho pra ensinar, desde cedo, como deve ser. Passo a passo. Elogia quando agem de acordo com o que defende. Em vez de ficar na amizade, avalia. Aponta caminhos, julga ato por ato e condena ou aprova. A tal criança, caso passe a existir, será orientada.

Fundo

Imagina pronto. Letras em palavras separadas por espaços. Tantas linhas, acentos e pingos. Bloco de texto bem acabado. Alinhado à esquerda e sem rasuras. Fonte elegante. No fundo branco, sinais gráficos em sequência lógica. Contexto e conteúdo. Idealiza um produto que, consumido, suscite deleite. Serviço completo. Viúvas eliminadas, redundâncias extintas e erros corrigidos. Não teria indentações. Seria antigaguejo e fluido de cima a baixo. Até o último ponto, seguiria em velocidade de cruzeiro. Encorpado e agradável. Tanto que, só de olhar, ficaria feliz.

Escola

Chega, senta, não pergunta nada e começa. Incomoda. No início, solidários e inocentes, deixaram à vontade. São treinos pra eventuais apresentações. Diários e repetitivos. Flautista na escola, virou ator. Pratica diálogos e expressões. Voz alta, cantoria e gritos. Não é que não gostem. Tão cansados. Acostumado à conivência, é insensível ao desprazer que proporciona. Tá no automático. Quer, ao máximo, aproveitar o tempo no espaço. Os importunados discutem. Uns defendem a abertura do jogo. Interromperiam de imediato a continuidade do comportamento, justificariam a mudança de humor e esclareceriam as saídas pela esquerda. Outros, pela omissão, confabulam. Adilson interpreta.

Consumo

A caixa d’água, vazia, precisava encher. Repetia preces que conhecia. Vibrou quando apareceu alguém pra, finalmente, ligar a bomba. Alívio. O fluxo foi liberado às nove e interrompido às onze. Quase entupiu. Ganhou peso que não queria. Perdeu aos poucos, no decorrer do consumo. Sílvia demora no banho. Evandro é rápido. Filhos e visitas, em proporções distintas, também gastam. Dias depois, alcançou o nível ideal. Volume médio. Nem pouco nem muito. Pra continuar assim, do jeito que gosta, depende dos moradores. Teriam que saber do desejo e fazer por onde. Não percebem. Insensíveis aos anseios do tanque, deixam secar.

Furo

Os sobreviventes, após enterro dos mortos, construíram o barco. Cataram madeira, cipó e pano. Eram nove jovens. Três rapazes e meia dúzia de moças. Ignorantes em relação à náutica, demoraram pra acabar. Botaram na água. O primeiro furo, taparam. Depois não deu. Voltaram pra terra firme. Após insinuações, conclusões e discussões, Beatriz tomou a frente. Mandou Tarcísio arrumar cola. Priscila martelo e Andressa, caixa de papelão. Pediu ajuda pra Renata. Na areia, desenhou atividades e funções. Teria que caber todos, flutuar, ganhar velocidade em razão do vento e possuir mecanismo de imposição de direção. Avelino e Vera, responsáveis pela alimentação do grupo, trouxeram capivaras abatidas. Rejane cozinhou e Tenório lavou a louça. De noite, música ambiente.

Parede

O que faz à noite, no quarto, é normal. Dorme de lado. Rola na cama e perde contato com o travesseiro. Acorda de barriga pra cima. Durante o sono, ao que parece, desliga. Não entende bem. Sonha quando não passa batido. Na última produção da mente em estado de torpor, protagonizada pela colega atraente, deu tudo certo. Falou pouco e começaram. O coito imaginário foi interrompido pela realidade. Assustado, viu as horas. Dava tempo. Tal atividade mental, imprevisível, impressiona Caio. Flor que voa, luva na parede e elefante magro. Tem dia que baba.

Azul

Debaixo de chuva, pulou a poça d’água. Atravessou a rua. Aproveitou a presença da marquise e, desatenta, trocou de camisa. Tirou a molhada e botou a seca. Verde por azul. Olhou ao redor. Surpreendida pela presença do rapaz ao lado, cumprimentou e disfarçou o constrangimento. Esperava o ônibus. Minutos antes, entediado, lamentava. Viu com clareza e achou a cena ótima. Entusiasmado, fingiu naturalidade. Sorriu de volta. Após o compartilhamento de comentários banais relativos às circunstâncias, silêncio e atenção. Veio o coletivo.

Natural

Quando tá bem, sabe que vai ficar mal. E vice-versa. Tranquilo, por exemplo. Perdeu a ilusão da continuidade da sensação. Dali a pouco, tenso, percebe a mudança. Fica feliz e preparado. Certo de que tem fim. Angústia efêmera, euforia passageira e alternância constante. Chora e acha graça. Fases difíceis, de insatisfação completa, antecedem entusiasmo. É natural que saia do controle. Refém da sucessão de transições, navega entre oito e oitenta. Tem gratidão, afeição e agressividade. Questão de tempo.

Romance

Tirou do gancho e dormiu sem ligar. Renan sentiu. Imaginava que, como de hábito, ouviria o som da chamada. Percebeu tarde, quando o sono bateu. Pegou o telefone e discou. Recado claro, cruel. Premeditado. Além de não procurar, se escondeu. Não quis falar. Por desencargo, tentou de novo. Passou a noite ansioso. Surpreso, magoado e triste. Não teve beijo. Nem tchau, nem briga, nem oi. Elencou possibilidades. Traição e cansaço. Desgosto. Descaso e raiva. Não sabia. De manhã, logo cedo, poderia insistir. Mas não. Concluiu que não faz falta pra Isadora. Que aquele amor, cantado e escrito, desapareceu. Que a saudade sumiu e que o romance acabou.

Distância

Tava na cara e, efetivamente, brigaram. Era vez do parceiro e o lixo tava bom. Canastra real, coringa e um oito que cabia antes do nove. Com medo da decisão prestes a ser tomada, inquietou. Não podia falar. A linguagem corporal, somada aos barulhos que produzia, deixou clara a instabilidade. Pressionada e nada convicta, a dupla de José comprou no baralho. Fez errado. Assim que jogou fora, reagiu. Explicou a distância entre o cometido e o que deveria ter sido. Ouviu o que não queria, respondeu à altura e o clima, ruim, não mudou depois da batida. Na contagem, confirmação: pouco ponto acumulado e muito pra pagar. Derrota acachapante. No negativo, optaram pelo abandono precoce do passatempo.

Impulso

O trem, em velocidade constante, foi visto ao longe por Miguel. Tinha perdido a hora. Pra não perder a viagem, precisava pular e cair dentro do vagão. Calculou a relação entre impulso, vento e atrito. Algumas portas estariam abertas. A saída da inércia, presumida pra dali a pouco, seria sucedida por determinados movimentos. Ajeitou o corpo e preparou o salto. Sem dificuldades ou sequelas, obteve sucesso. Viu bancos ocupados e olhos fechados. Passadas casas e paisagens, o ritmo da locomotiva foi reduzido gradativamente pelo maquinista. Até que, de acordo com o previsto, parou na estação. Após embarques e desembarques, retornou à navegação sob trilhos. Miguel, na rua, andava rápido. Abandonou o comboio no tempo certo.

Osso

Não é de ferro. A carne, colada no osso, sofre cortes. O osso quebra. Nervos que passam pela cabeça e coração pelas mãos. Diarreia, limitações e teimosia. Sujeição à panes. Entre sim e não, possibilidades que atormentam. Funciona. Silencia no fim. Esconde o que guarda, absorve e resigna. Quis ser escritor. Leu e escreveu sem que ninguém visse. Quis ser músico. Som no quarto, de porta fechada. Trabalha. Ingere. Fim de semana. Dorme. Acorda. O contentamento, intermitente, acaba em desgosto. Cobrança. Prazo esgotado. Ante à conjuntura, propícia à colapsos, retração. Resistência.

Palácio

A cabra recorreu ao coelho. Ganhou um pouco de pelo. Rabo do cavalo e orelha do porco. As patas, doadas pela vaca, couberam. Depois da boca cedida pelo leão e da genitália pela raposa, faltava o nariz. Pediu pro jacaré. Pra macaca, pro galo e pro peixe. Ninguém tinha. Orientado pelo sapo, foi no palácio. Bateu na porta, recebeu a negativa e voltou pra casa do caranguejo. Triste, comentou com o esquilo que, comovido, sugeriu ver com a girafa. Do lobo, tomou um fora. Elogio da tartaruga. Conseguiu com o elefante. Botou no lugar e, de imediato, começou a cheirar.

Bocejo

Após matar, pediu desculpas. Agiu por instinto. Considerou ameaça quando, a pé e de bota, o menino ultrapassou a cerca. Vinha com um facão pra cortar galhos e uma vara de pescar. Olhou pro hipopótamo. Sentiu medo mas, por ignorância, não cogitou a possibilidade do assassinato. Achou que era um bocejo e seguiu em frente. O animal então saiu da água, correu determinado e atacou. O lagarto viu. Criticou o homicida pela intempestividade. Alertou pro fato de que, com esse tipo de recepção, afastariam as visitas. Falou sobre bom senso e reiterou a necessidade de raciocínio prévio à atitudes do gênero. O mamífero entendeu e, arrependido, prometeu melhorar.

Térreo

Cheirou um pó e foi pra escola trincado. Fez a redação. Releu, virou a folha e, com calma, esperou pra entregar. Pensou na vida. No pai, na mãe e no irmão. Na avó, que mora longe, e nos primos. Desenhou no papel em branco. Trocou de lápis pra colorir. De uma hora pra outra, lembrou da frase e quis mudar. Revirou pra reescrever. Confuso em relação à mensagem, demorou. Trocou o conceito pelo fato. Botou um ponto no fim. A professora, ansiosa pra sair, recolheu apressada. Desceu devagar. Chegou encucado no térreo e pediu a opinião do pessoal.

Diferença

Preta, gorda e feia, fuma maconha. É argentina e macumbeira. Manca e, na política, defende o adversário. Torce pra outro time. É loira, bi e pobre. Prostituta e velha. Tem tatuagem, piercing e cabelo ruim. Gosta de funk e pagode. Ex-presidiária, anã e disforme, tá com aids. É canhota e mora na favela. Usa pochete. Atacada sem mais nem menos, tenta entender. A diferença que faz.

Margem

Eliane não arrisca. O sanduíche é o mesmo e o marido, estúpido, não muda. Prima pelo que tá garantido. Em jogos de pôquer, costuma pedir mesa. Abandona mãos razoáveis, tem receio das boas e desconfia das ótimas. Com as imbatíveis, é o júbilo. Certeza absoluta. Paga pra ver, recolhe fichas e comemora. Só participa quando não vale dinheiro. A covardia, aliada à falta de ambição, estende circunstâncias. Faz tempo que quer respirar novos ares. Ainda planeja. Presa à margem de segurança, evita o perigo. Obstrui o ímpeto.

Solidez

Enxerga com clareza. Consulta datas de validade, notas de rodapé e placas de trânsito. Focaliza e, mesmo à distância, lê. Distingue pessoas e desce escadas. Atravessa a rua. Observa o fluxo pra, consciente, começar a andar. A nitidez propiciada pela eficácia do olhar trouxe benefícios. Discernimento pra tomada de decisões. Cores que pareciam misturadas escancaram solidez. Reflexos que não machucam. Vê, ao longe, fauna e flora. Cidade aos pés. Asfalto. Confere gravidade ao que era despercebido. Atento aos detalhes, meandros e conceitos, persegue o fim. Acende luzes pra sair do escuro.

Loja

O chapéu colorido ficou na cabeça de Flávia. Gostou mais do que do branco. Metade azul, metade amarelo, tava mais caro que os outros. Não comprou. Ficou indecisa e, pra evitar arrependimento, deixou pra resolver depois. Remoeu. Entre as alternativas, adquirir ou não, avaliou prós e contras. Pesou custos e benefícios. Voltou na loja. Provou de novo, chamou a amiga pra ver e pediu pra vendedora deixar separado. Disse que pretendia levar. Em casa, perguntou a opinião de pessoas com as quais convive. Uma falou pra ir em frente. Outra, pra refugar. Refletiu sobre o assunto e, no fim de semana, tomou a decisão.

Boneca

Falou de amor pra impressionar. Citou Rafael, amigo de infância. De quando viviam juntos, brincavam e comiam frutas. Nenhum beijo na boca. No máximo, carinho ingênuo e abraços. No aniversário dela, de onze anos, encheu um saco com bolinha de gude. Entregou entusiasmado e estranhou a reação. Distraída pelos convidados, deixou de lado, perto dos outros. Pegou um papel e escreveu um bilhete. Maria leu, gostou e agradeceu. Disse que, assim que fossem embora, daria atenção. Foi bom porque o menino relaxou. No fim da festa, trocaram a sala pelo quintal. Lembraram dos presentes e de quem tinha dado. Roupa da tia e boneca do pai. Brincos da avó. Jogaram búlica, mata mata e triângulo. Quando deu a hora, tarde da noite, prometeu que voltaria. De manhã cedo.

Poltrona

Cansado do português, virou poliglota. Definiu como meta. Escolheu uma língua pra começar. Traduziu artigos, bulas e manuais. Tirou legenda de filmes e documentários. Aprendeu e pulou pra outra. Quando completou cinco, já mais velho, ficou feliz e resolveu viajar. Despachou a bagagem. Entrou no avião e inclinou a poltrona. Dormiu no trajeto, acordou e conversou em hebraico. Na despedida, sorrisos e saudações. Falou com o taxista sobre o caminho. Elogiou a recepcionista e a camareira. Fechou a porta. No quarto, leu avisos e pediu comida. Pensou no idioma materno e, animado, escreveu.

Couro

Quando, no relógio de Adalberto, o ponteiro maior enfrentou o menor, parou o tempo. Ficou surpreso. Mal orientado pelo mostrador, passou a vida sem cogitar a possibilidade. Até que, num instante, perdeu a paciência e mudou de rumo. Caminhou na direção contrária. Viu a mobília e acessórios estáticos. O cachorro latiu e as pessoas, que antes papeavam, continuaram. Não entendeu porque achou que virariam estátuas. Não é bem assim. Fazia força. As horas, de tão nervosas, tentavam atropelar os segundos. Permaneceu firme. Forte, resistiu por um período que, naquele momento, era incontável. Até a intervenção da pulseira. Reuniu os dois, explicou e mandou refletirem. Disse que os meses, anos e séculos deixariam de passar. Citou semanas e quinzenas. De acordo com a correia de couro, seria presente pra sempre. Pensaram no assunto. Brigaram, calcularam e decidiram. Àquela altura, em que ninguém esperava por nada, fizeram as pazes.

Chapéu

A meia calça, guardada, saiu de moda. Fica perto do macacão. As calcinhas velhas e o vestido de noiva, batido, ocupam a gaveta de baixo. A sandália perdeu o salto. Saias, shorts e tops, deixados de lado, apoiaram o chapéu de palha que, cansado do descaso, incitou a violência. Atacaram roupas novas. Mancharam a blusa e rasgaram o sutiã. Antes da festa, sujaram o casaco. Cortaram os dedos da luva, esconderam os cadarços e venderam os cintos. Queimaram o biquíni. Quando a dona chegou, atrasada, abriu o armário. De cara, viu a camisola molhada e a bota furada. Entrou em desespero. De tão perplexa, custou pra chiar. Tinha que sair. Botou uma jaqueta amarrotada que, pelas costas, chamaram de ultrapassada.

Curva

Os golpes, desferidos por terceiros, mataram Jonas. Defendia Eugênio. Pulou na frente da barra de ferro. Cabeça amassada, fígado magoado e osso quebrado. O colega, assassinado depois, levou um tiro. Coração perfurado. Lutavam porque achavam necessário. Atiraram bombas contra inimigos. Acreditavam que, apesar dos riscos, o esforço era válido. No dia do extermínio, saíram em bando. Sucumbiram ao longo do trajeto. Irmãos, filhos e amigos de infância. O pai, veterano, foi pego na curva. Cabeça decepada. Afiada pelo algoz, a faca percorreu o pescoço. Sangue, pele e pus. Passou pano pra usar de novo.

Time

No dia do jogo, a ser disputado num salão ao ar livre, chovia. Heleno trocou de roupa, calçou tênis e olhou nervoso pela janela. Lamentava e torcia pela estiagem. Se opunha ao cancelamento e, pra evitar, fez contato com o pessoal. A maioria já tinha desistido. Foi mais cedo, levou rodo e pano de chão. Assim que as nuvens pararam de expelir água, trabalhou na secagem do piso. Ficou pronto a tempo. Como ninguém tinha aparecido, ligou de novo. Sete, oito, nove. Faltava um. Chamou Denílson, desconhecido que passava na rua. Negou porque não podia. Sorte que Cláudio, inesperado, deu as caras.

Oposto

Pagou jantar, hospedagem e gasolina. A solicitação de beijo, aceita durante o passeio, decretou o início do romance. Deu flores, café na cama e, no frio, cobriu. Ouviu a calúnia numa conversa qualquer, na presença de amigos. Ao questionamento, feito por acaso, Darci respondeu o oposto da verdade. Não entende o motivo. Pra saber, teria que perguntar. Procurou razões na própria mente. A que considera mais provável, uma pena, pressupõe falta de apreço. Ausência de reflexão e autocrítica. Diante do ato, que contradiz declarações recebidas, pensou na separação. Achou a ideia boa, imaginou o que diria e comunicou. Não concebeu caminhos que levassem à continuidade. O cônjuge, surpreso, pediu explicações.

Mínimo

Em silêncio, convivem. Dividem espaço. Passam perto e, pra não cumprimentar, abaixam a cabeça. Fazem o que vão fazer e vão embora sem dar tchau. Ambiente frio. Ao invés de harmonia ou hostililidade, indiferença. Voltam quietos no dia seguinte. De tanta decepção, preferem não arriscar. Não têm curiosidade. Optam pelo maior distanciamento possível. Quando tá cheio, dão um jeito. Falam o mínimo necessário. Pedem licença, agradecem e pronto. Na fila da água, aguardam mudos. Bebem e voltam aos lugares. Os sons que emitem, por questões particulares, não pressupõem diálogos. Assovios, gritos e suspiros. Tudo impessoal.

Ganso

O marreco, o pato e a cegonha, distantes uns dos outros, sobreviveram. Seguraram firme no que deu. O galo e o ganso, mais cansados, perderam as forças. Morreram próximos. Um largou o toco e outro quebrou o galho. O jacaré, submerso, esperou a queda e comeu crus. Os que restaram, tristes, choraram. Pegaram pedaços e enterraram. A gaivota desceu. Perguntou detalhes do ocorrido e disse que, se desse, teria ajudado. Mentiu feio pro pavão.

Tipo

Faltava tudo, desde o início. Os tubos de sangue, etiquetados, mofavam no armário. Urina e fezes na gaveta. Utensílios na bancada e relógio no pulso. Examinou o primeiro. Tipo A, sem infecções. O de Vítor foi o segundo. Terceiro e quarto, saudáveis, deram pouco trabalho. Prosseguiu apressado. Por motivações clínicas, relacionadas à validade da amostra, jogou o subsequente fora. Depois vieram um jovem, uma doente e um idoso. Preencheu as fichas. Por falta de tempo, parou em Vanderlei. Sobraram alguns. Agnaldo, desinformado, esperou na fila.

Ocorrência

Falou com o namorado da amiga e deixou clara a intenção de transar. O dela, a caminho do quarto, não desconfiava. Chegou e viu. Ambos na cama, pelados. Ele ajoelhado e ela de quatro. Entretidos, não notaram o aparecimento de Plínio. Saiu quieto e chamou Isabel pra ver também. Quando manifestaram a repulsa, Marisa tava de pé, de costas pra Heitor. Interromperam a movimentação e cataram as roupas. Vestiam enquanto, desnorteados, improvisavam explicações. Os traídos, num comum acordo não planejado, mantiveram silêncio. Sem palavras, partiram. Tanto adúlteros quanto ludibriados refletiram sobre a ocorrência. O novo casal, oficializado após dissolução definitiva dos precedentes, durou pouco. Ciúmes em demasia.

Amigo

O que não existia, depois de pronto, seria apresentado. De um modo específico. Pra começar, forçou o cérebro. Idéias ruins, pensamentos distantes e possibilidades. Escolheu uma e insistiu. No rascunho, fez a cabeça. Cabelo branco e brinco de argola. Membros e tronco, desenhados, tomaram corpo. Rasurou o joelho e pintou os pés. Apagou tudo. Desistiu de ser humano. Criou um monstro de olhos azuis e dentes brancos. Sem pêlos. No clima, concebeu e caracterizou o amigo. Um robô engraçado, tímido e alto. Botou pra conversarem no parque. A criatura fantástica, extrovertida, explicava. Teorias complexas sobre matemática e filosofia. Números que, em tese, valiam menos.

Contentamento

Pra evitar saudades, prendeu num abraço. Apertado, sem brecha. Não soltou. Cansou da alegria finita, do tempo aprazível que cede a vez. Quer felicidade contínua. Paz no peito, mente sã e corpo em ordem. Dia após dia. Tanto que, naquele dia, apelou. Concretizou a idéia. Sentiu o momento mágico e, na distração da sensação, capturou. Segurou firme. Cegado pelo lado bom, não vê o aspecto negativo. É que, encarcerado, o contentamento não anda. Não passa pros outros. Pros vizinhos, tristes, sobram lamentações e pesares. Todos desiludidos. Deprimidos e deprimentes.

Recompensa

Deixa o melhor pro final. Batata frita, linguiça e bife. O grosso, feijão com arroz, farofa e macarrão, come primeiro. O que sobra é a recompensa. Às vezes, de olho grande, pensa em avançar. Passar direto pro frango ensopado. Não tem coragem. Tem medo de que, depois, não tenha ânimo pra acabar com a comida. De que abandone no prato. Seria errado, inconsequente e perigoso. Diversão antes da hora.

Buzina

Foi tão bom que faz mal. Tá cabisbaixo e saudoso. Pensativo, concebe reedições. Tem pena do presente. O tempo no campo, bem passado, virou referencial. De clima, visual e astral. Do bom e do melhor. Tinha tempo de sobra, fruta no pé e água da fonte. Ar puro e livre. Ambiente agradável, equilibrado. Verde com vermelho e azul. Preto com branco. No áudio, show à parte. Ouviu sossegado. Tranquilo e calmo. No momento, angustiado, lamenta. Mal dormido, desanimado e aborrecido. De encontro à paz, insanidade. Pássaros por buzina e despertadores ligados. Almeja migrar. Substituir o incômodo pelo ideal.

Madrugada

A maioria esmagadora, de acordo com estatísticas confiáveis, já viveu e já morreu. O resto tá aqui ou tá pra nascer. Em 200 anos, com excesso de margem de erro, também serão cadáveres. A distância aumenta. Doenças, assassinatos e acidentes. Suicídios. Quem tá na ativa, especula. Passou dessa de madrugada, em casa. Óbito no atestado. O que nasceu, Lucas, incrementou o número de habitantes. Em relação ao de defuntos, calculados desde os primórdios, tende ao insignificante. Produção em massa de individualidades dispensadas. Enterradas, queimadas e afogadas. Desovadas. No momento, somos quem fica.

Norte

A máxima, pronunciada por quem tinha a palavra, resumia a questão. Liberdade de quem vive na Terra. Cortada em pedaços. Norte, sul, esquerda e direita. Espaços habitados por irracionais e dotados de intelecto. Pensam diferente. As idéias, quando conflitantes, geram desavenças. Por meio de brigas, acordos e imposições, as partes são ocupadas. As divisões têm subdivisões e as subdivisões também têm. Países, bairros e ruas. Pessoas nas casas. As linhas, vistas de cima, fecham cercos. Contam história. Sem vento, chuva ou bichos do mato. Só o desenho. Os grupos, que adotam posturas e emitem opiniões, parecem indivíduos. Guiados por governantes.

Chuva

A tempestade repentina, de uma hora pra outra, caiu do céu. Forte, com relâmpago. Antes, estrelas. Nenhuma nuvem. Veio do nada. Quem olhava pra cima, pra contemplar, não entendeu nada. Nada fez sentido pros meteorologistas. Previam ausência de chuva. Subitamente, passou pela estratosfera. Parecia que tinham guardado num balde gigante pra largar no três. O sol, num piscar de olhos, tomou conta. Nova surpresa. Caos na Terra. Notícias sobre o tema. A lua, cheia, apareceu também. Guerra. Pedradas, pauladas e tiros. Fim da vida. Os astros morreram.

Comédia

Nesse dia, suportou menos. Mandou o amigo embora, a mulher sumir e o filho, caçula, brincar na rua. Faltou o trabalho. A teoria, que compunha, deixou de lado. Fez alongamento, chutou móveis e mal comeu. Viu o início da comédia sobre baleias. Acordou com raiva de ter perdido o final. Tirou o telefone do gancho e, no diário, escreveu o que houve. Engasgou no começo. Entre desconhecidos, andou só pelo bairro. Pensou nos motivos e possibilidades. Chorou tanto que, num soluço, engoliu seco. Parou na padaria. Três pães, um suco e a conta. Comeu na sala. A criança, cansada, voltou pra casa. Obrigou a tomar banho e botou cedo na cama. Sem história.

Morte

Facilitou a vida. Diminuiu a carga, abaixou o volume e prestou atenção. Viajou no processo. Pra conseguir, corta em pedaços. Objetivos menores, adequados à disponibilidade e às condições físicas e mentais. Cansado, desiste. Insiste quando tá empolgado. No íntimo, sente que dá certo. Percebe a qualidade dos fluidos. A tática é igual. Primeiro concebe. Mentaliza, repete e materializa. Às vezes esquece, falha e se complica. Pára e pensa pra começar de novo. Conserta. Entre descansos e ações, erros crassos e tiros certos, enxerga as peças que encaixa. Aceita quando dá errado. Entende que, tirando a morte, nada é fatal.

Posse

Precavido, deixa um na carteira. Pra garantir. A tática, adotada por segurança, evita transtornos. Optou pelo método quando se arrependeu. Ficou na vontade. Não é que consuma sempre. É a sensação de posse, permanente, que justifica a estratégia. Quando quer, pega e usa. Faz escondido pra ninguém ver. Pra evitar imposições, grosserias e punições. Perguntas e conselhos dados por quem condena. Há quem goste. Num povoado tolerante, faria às claras. Dividiria com quem quisesse.

Pântano

O túnel, incomum, tem duas saídas. Uma logo à direita e outra no fim. A da direita, perigosa, dá pra um pântano com areia movediça e monstros arredios. A vantagem seria o abandono imediato. Passaria pelos perrengues e, adiante, alcançaria a área arborizada e habitada por pássaros cantantes. Se continuar em linha reta, sai pela frente. Direto no campo florido. Só que tá longe e tá com pressa. Abomina o ambiente mal iluminado. As pernas, atacadas por câimbras e estiramentos, reclamam de maus tratos. Cansaram de dar passo em falso.

Cabo

Acreditou no inexplicável quando o boneco sumiu. De repente, no quintal. Do dia, em busca do herói, não esquece. Nunca mais viu. Tempos depois, entrou em desespero por uma peça de plástico. Não achou. Angustiada, orgulhosa e insistente, demorou pra admitir o desaparecimento eterno. Provada a possibilidade de que algo tão estranho aconteça, tão despropositado, resignou. Por último, faz dias, um cabo curto. Não sabe pra onde foi. Olhou nos cantos e pra baixo. Afastou almofada, abriu gaveta e mochila. Tá preparada, pelos antecedentes, pra perder pra sempre.

Capital

Antes de dormir sozinho, passou perfume. Pra agradar a si próprio. O cheiro, captado pelo nariz, tava bom. Poderia não ter usado. Fez diferente por impulso. Gostou bastante, mas lembrou do capital investido num produto que, naquele momento, não atingia exemplares do sexo oposto. Na noite seguinte, na dúvida, usou de novo. Adotou a conduta dali em diante. Quando esquece, fica tranquilo. Só tem medo de que, justo numa exceção dessas, apareça de repente uma mulher disposta a compartilhar a cama. Pediria licença pra botar. A acompanhante, nesse caso, esperaria. Conheceria Fabiano e tiraria conclusões. Saberia que não toma banho de manhã.

Água

A cabeça do pau, branca, mostrou o caminho. O tronco também. Encolhido, abatido e inerte. Sem sangue. Assustado pela languidez do órgão que deveria estar pronto pra ficar duro, guardou na cueca. No espelho, cara pálida. Molhou partes do corpo, alongou o pescoço e andou na diagonal. Partiu em busca de algo interessante. Pediu água. Prosseguiu impregnado pelo déficit de saúde e, pra reagir, parou pra respirar. Só comeu mais tarde, já em casa. Deitou e dormiu. Horas depois, acordou bem. Viu que a glande, recuperada, tinha cor.

Máquina

A caixa fora do lugar foi culpa de Fernando. O pessoal percebeu. Incomodados pelo posicionamento equivocado, comentaram em voz alta. Apontaram pro responsável. Sem graça, fez uma cara de babaca enorme. Expressão típica. Parou de brincar e ficou arredio até ir embora em silêncio. Sabia que o certo era deixar entre a bicicleta e a escada. Na hora, por algum motivo, fez confusão. Ouviu alguém falar alguma coisa. Entendeu errado, vacilou e não pode consertar. Depois, imerso em autocrítica, repensou prioridades e metas acessórias. Absorveu o impacto. No reencontro, calejado, atenção redobrada. Perto da máquina, encostada na vassoura.

Vizinho

O romance é diferente. Contextualiza, descreve e continua. Quando é bom, prende. Eduardo escreveu. Personagens, cidades e meios de transporte. Alguns voavam. Na trama, manjada, julgamentos de crimes passionais cometidos por alienígenas. Faca e queijo na mesa. Pão francês e leite quente. Ficou puto com a cônjuge que, acompanhada pelo vizinho, tomava café. Falou alguma coisa, tomado pela raiva. Tinha um rosto estranho ao nosso. Típico do lugar de onde veio. Usou a arma que tinha e, primeiro, matou ela. Depois ele. Não se matou porque não quis. Tinha amante e filhos. Terráqueos.

Livro

Comprou uma cafeteira. E pó. Com medo de ficar viciado, quase desistiu. Adquiriu porque priorizou o efeito. Imagina que, do jeito que é, vai controlar. Na média, três por dia. Se quiser mais, consome. Menos, ignora. É educado, magro e prefere comida pesada. Angu, rabada, bucho e mocotó. Come o quanto pode. Nascido em um e criado em diferentes municípios, cresceu. Desenvolveu raciocínios acerca de temas. Teve problemas com um. O que fazer, na maioria dos dias, pra amenizar a pressão negativa imposta pela sobrevivência. Leu o livro de um cara morto. Refletiu, concordou e piorou. Existência desnecessária. Acordou cansado, desmotivado e desgostoso. Tarefas a cumprir. De repente, pânico. Procurou, no contexto, respostas. Repetiu a pergunta. Foi na cozinha, passou um café e voltou pra sala. Próximo de um colapso, em meio ao desespero, ouviu o cérebro. Frase simples, direta. Bomba na cabeça.

Cortina

O animal abatido, triste, recebeu conselhos. Dicas, exemplos e atenção. Café na cama e elogios. Bombons na caixa, flores e cartões. Ganhou beijos e abraços. Ouviu recados e absorveu sentimentos. Após cumprimentos, foram embora. Não saiu do lugar. Botou um filme e desistiu. Música também. Tentou ler. Parou. Palavras cruzadas, vídeos e fotos. No silêncio, solidão. Naquele espaço. Não comeu o que trouxeram. Bebeu água e, desatento ao ato, olhou pela janela. Levantou. Fechou a cortina, virou de lado e ficou de frente. Deu tempo pro espelho. Recapitulou. Passo a passo de um drama que, de tão recente, não sai da cabeça.

Verde

Em meio às linhas, recados. Mensagens subliminares. Segundas intenções, indiretas e subentendidos. Fundos de verdade. As construções, elaboradas em prol da finalidade, dão a entender. Perguntas típicas. Ausência de legítimo interesse pelo tema. Insinuam. Fazem alusões, menções e referências. Acumulam indícios. A idéia, de não deixar claro, impede a exposição explícita. Sobram sutilezas. Comentários evasivos, banalidades e desejos contidos. Sujeitos à rejeição, jogam verde.

Bancada

O passeio matinal pela floresta encantada levou o cavaleiro à morte. Vinha devagar, solidário ao ritmo do eqüino. Tomou um tiro fantástico na cabeça. O projétil, disparado pelo feiticeiro, congelou o cérebro e estourou. Fez a bala em casa. Tem uma bancada de madeira, recipientes e poções mágicas. Pra imprensa aliada, disse que não matou. Mas tem um vídeo. Filmado pela artesã desacordada. Em alta definição, deixa clara a autoria. A guarda local encoberta. Foi Alberto, governante absoluto, que combinou com o mago. Deu moedas de ouro pra que comprasse ingredientes.