Corrente

Acordou preso. Nada de corda. Nem algema, nem cadeado nem corrente. O corpo, livre e saudável, podia ir e vir. A mente que não deixava. Condicionou a liberdade à construção de algo extraordinário. Algo tão comovente que justificasse a alforria. Chave na porta. Trancada. Pra sair, algo brilhante. Diferente. O que fez não serviu. Precisava de mais. Insistiu e, num esforço descomunal, cavou um buraco. Fantástico. Gostou tanto que foi liberado.

Metade

Com inveja do mendigo, que dormia de tarde, voltou do almoço. Prato pra um. Comeu metade e levou a sobra. Outro cara, acordado, pediu. Negou e andou. Chegou atrasada. Ainda com sono, trabalhou, compensou o quarto de hora e foi embora. Na saída, na rua, família inteira. Miséria. Jantou a quentinha.

Igreja

Sem toalha, pulou pelado. Tinha hora. Repetiu a roupa e, a passos largos, andou na rua. Fez sinal. Sempre faz. A igreja, das antigas, ficou pra trás. Mercado, farmácia e posto. Padaria. Seguiu em alta velocidade média até chegar no mecânico. Pediu informação. Orientado a pedir ajuda, parou na esquina. Disseram que a praça tava perto. Depois da curva. Chegou e viu, no banco, a caixa. Deu tempo.

Papo

A mulher, quando viu a outra, não imaginava. Experiência nova. Era apaixonada por Vitor. Sofreu, separou e sofreu. Achou que era pra sempre. Desencantada, contou pra Bianca. Papo de amiga. Mudou. Olhares, toques e harmonia. Tesão. Primeiro beijo. Primeira vez. Com o tempo, amor. Do mesmo jeito. Imenso.

Síntese

Decretou, pra si, o fim dos títulos. Parou de usar. Solidário a combinações inteligíveis de letras, respeita o poder de síntese de uma palavra só. Não sobrecarrega. Evita que, isolada lá em cima, fique mal. Também não gosta de frases inteiras. Não assim. É contra a exploração de vocábulos pra dar ideia do conteúdo adiante. Sem denominação, sem índice e sem prefácio, impede conclusões precipitadas. Conta a história. Ponto final pra acabar.
78 é o ideal. Perfeito. Lindo. Setenta e nove já estraga. Perde o brilho. Começa assim. Em branco. Três destaques: medo de ter deixado o ventilador ligado, vaso entupido e execução da melodia. Ficou com aquilo na cabeça. Perturbado. Quando foi embora, displicente, não deu atenção. Mal dormiu. Sobre o banheiro, tentou água quente depois da sanitária. Até que, com uma pequena garrafa aberta no fundo, provocou a sucção. Agora as notas. Ordem cronológica mesmo. Descansado, descobriu como era. Vontade e paciência. Capricho e pronto.
Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Te amo. Fim.

Vontade

Ouviu o que disse, alto no ouvido, o órgão responsável pela circulação sanguínea. Foi claro, insistente. Queria ação. Que fizesse a vontade virar fato. Perdeu tempo. Mais tempo. Até que, numa das tantas tardes, conseguiu. Botou em prática. Preparou, apontou e finalmente golpeou, com um dos membros de locomoção, o recipiente plástico que tem alça e é mais largo na borda que na base. Orgulho imediato. Felicidade enorme. Diante do que é novo, anda. Pra frente.

Buraco

O da esquerda é grave, sisudo. O da direita berra. Era um abismo: |                            |. Quiseram ajudar. Pra aproximar, botaram um no meio: |              _             |. Nem lá nem cá. Perfeito. Precisavam de mais: |      _      _      _      |. Os dois novos, chegados aos extremos, somaram. Ainda tinha buraco pra tapar. Continuaram. Depois de pronto, |___________________________|, ficou fácil. Nem precisou pular.

Dragão

Um desenho em cada uma. Dragão na branca e Deus na preta. O alien, na azul, cuspia. Cortes na verde. Inseto na vermelha e pessoa na amarela. Coisa de artista. Ficavam na sala. Esferas enfileiradas em rotação vertical. Caíram e quebraram. Esperança nenhuma. Nenhum pingo. Como pôde, catou os cacos.

Agora

Ficou quatro minutos no espelho. Olhos nos olhos. Fez o texto que agora lê. Por quatro minutos, de pé, close. Cabelo, boca e barba. Feições. Reações. Parou, por quatro minutos, pra ver.

Lado

Uma hora acorda. Não tem jeito. Sem despertador, sem compromisso e sem vontade. Viva, abre os olhos. Fica deitada. Lamenta de barriga pra cima. Pra dormir mais, vira pro lado. Desvira. Desiste. Levanta e, de pé, se arrasta. Até dar sono de novo.

Estalo

Lembra bem da porta branca. Proteção de ferro, quatro degraus e ela. Abria pra dentro. Sem chave, tocava a campainha. Ouvia o estalo. Empurrava e largava. Deixava bater. No caminho, já sentia. Entrava a contragosto. Pensava em como seria lindo se, nunca mais, passasse pelo vão deixado pela rotação do retângulo. Também tinha corredores, salas e janelas. Ia sempre. Todo dia.

Custo

Jair sempre perde. É fraco. Quando começa, tomado pela emoção, desconcentra. Quer que acabe. Aceita argumentos contestáveis. Arrependido por ter falado, escuta. Parece trauma. Pra brigar, mesmo verbalmente, é um custo. Porrada nem se fala. Prefere consentir. Numa situação extrema, em que a culpa do outro é flagrante, tudo bem. Perdoa. Luta pelo acordo imediato. Poucas vezes foi agressivo. Numa delas, por conta de um soco desferido, pediu desculpas.

Adulto

Depois de grandes livros, de muitas páginas, pegou um fininho. Autor despojado. Foi rápido. Absorvido, acabou. Quis outro. Achou melhor. Ficava preso em longas narrativas. Cansativas. Relevo, clima e contexto. Fisionomias. Esse não. É direto. Concentrado na trama, na intransigência dos envolvidos, puxa pro pessoal. Adulto imaturo em xeque. Contemporizador. Indeciso.

Barriga

São unidades. Uma de cada cor. Por mais que insistam, que propaguem a existência da possibilidade, não se fundem. Não dá. Quando o sexo é bom, quase conseguem. Desgrudam em seguida. A orelha é outra. Visão, cheiro e estrutura cognitiva. Saem da barriga. Não ficam. O abraço acaba, o sorriso fecha e os olhos abrem. Sonhos diferentes. Parecidos, coexistem. Dividem espaço. A premissa apregoada, da ajuda mútua, tem limite. Se conhecem. Se distribuem. Histórias e anseios, inacessíveis, guardam. Ninguém alcança.

Água

Com perda parcial de sensibilidade na língua, parou de sentir um gosto. Parecia pesadelo. Trocou de copo, bebeu outra água e foi igual. Notou a magnitude do órgão. Deu valor ao desempenho perfeito e ininterrupto até então. Pra se proteger do desespero, deixou pra lá. Cérebro em paralelo. Se distraiu e, quando viu, tava curado. Era só um talho. Nada demais.

Surpresa

Decidida, ficou em pé. Estranharam. Pegaram, conferiram e jogaram de novo. Mesma coisa. Chutaram. Correram pra ver. Ereta, destemida. Resolveu que, dessa vez, não ajudaria. Não tomaria partido. De cara, daria Marcelo. Comemoração efusiva. Diogo triste. Viu perplexidade. Que a dupla, surpresa, não entendia. Explicou. Pediu pra conversarem. Pra, ao invés da sorte, tentarem o acordo. Cogitaram. Pesaram prós e contras. Discutiram tanto que, com vergonha, guardaram a moeda. Disfarçaram. Falaram baixo. No fim da contagem, mostraram os dedos.

Sala

O filho, de um babaca com uma escrota, nasceu e vai crescer. Vai conversar com os outros. Sujeito à transmissão contínua de ideias ruins, tem tudo pra dar errado. Pra ser um bisonho que só anda com bizarro pra fazer merda. Tem dias de vida. Sem saber quem está na sala, dorme. Não entende nada. Se, já no hospital, tivesse sido trocado, seria ótimo. Pra ele. Pra espécie, daria no mesmo. Só mudaria o bebê.

Farmácia

No caminho, passou pela pracinha e pelo campo. Padaria. Até o hospital, que tratou mal do avô, ficou pra trás. Passou pelo primeiro beijo, pelo primeiro beijo que agradou e por decepções. Onde não tinha nada, farmácia. O mercado igual, a igreja igual e a casa, antiga, derrubada. Passou pelas brigas, pelo medo e pela bronca. Pelas flores. Absorvido, passou pelo pranto. Pelo esforço. Rede, raquete e trave no meio da rua. Passou pelo trauma. Pelo aplauso e pela escada. Euforia. De tênis e meia, passou pelo amor que não acaba. Que não muda.

Raiva

Tudo que escreve é lixo. Não presta. É tão ruim que dá raiva. Tempo que não volta. O texto chulo, desnecessário, cai mal. Leitores pedem misericórdia. Suplicam pra que tenham os olhos poupados de sequências tão infelizes de palavras. De ideias tão bobas. Se pudessem, evitariam. Não passariam nem perto. Fazem fila por obrigação. O primeiro, pelo menos, se livra logo. Os demais ficam apreensivos. Sofrem. Torcem pra que algo inesperado interrompa o processo de tortura em massa. No último, de doer, manteve o estilo.

Metade

Atrasado, bateu a primeira punheta aos 23. Tirou carteira aos 28, título aos 29 e fez sexo a dois aos 36. Tá com 72. Filho, filha e divórcio. Casou com 57. Até morrer, com calma, vive. Conheceu o mar aos 21. A barba, rala, apareceu aos 44. Nasceu com órgãos pela metade. Ficou inteiro aos 11 e, com 27, aprendeu a ler. Andou com 15, falou com 18 e assoviou aos 39. Com 70, tirou a boia do braço. Foi sozinho pro fundo.

Elogio

Tô orgulhosa de mim. Descobri isso agora. Depois de anos de autoflagelo cognitivo, de um medo constante, pensei assim. Dei força pra um raciocínio positivo em relação ao que sou e ao que faço. Feliz por decisões, ações e projeções, motivada, não vejo a hora. Que diferença. Entendo minha insignificância em relação ao todo, mas aqui, onde só tenho a mim mesma, sou tudo. Respeitei minha natureza. Convicções. Advogo pela paz, flores e demais. Sou repulsiva e asquerosa, claro. Só que tô bem. Teve uma coisa que me ajudou. Um elogio de graça, inesperado. Alguém olhou pra mim e disse, sem eu pedir, que sou muito linda. Agradeci e acreditei.

Tempo

Sempre passa rápido. É engraçado. Divertido. Até acabar. Ao longo da duração, felizes, aproveitam. Não pensam no mais que têm que fazer. Depois sim. Listam necessidades, cumprem tarefas e ocupam o tempo de maneiras menos satisfatórias. Combinam de novo. Realizam e acaba de novo. Forçam consideráveis extensões do período de convivência e, nem assim, deixam de lamentar o afastamento. Fazem com frequência. Começam cedo e evitam dormir.

Barulho

Sumiu quando, no ar, jogou o pó. Pegou a transversal. Pulou o muro e, no chão, deitou de barriga pra cima. Pessoas viram. Teve uma que passou direto. Quando perguntaram, disse que vinha sendo perseguido pela máfia russa. Por conta da invenção. Precisava se proteger. Destratado no instituto de patentes, esqueceu as formalidades. Guardou numa caixa. Fechou e submeteu à testes de resistência. Ouviu um barulho. Cabreiro, desceu pra ver. Arrastou a barreira, tirou o pano e conferiu. Botou de volta. Acionou o alarme. Segue atento.

Mundo

Ofereceu um beijo à flor, que, encantada, aceitou. Transe. Dividido e somado. Não queriam que acabasse. Acabou. Conheceu outra flor. Ofereceu um beijo à ela, que, encantada, aceitou. Transe dividido e somado. Não queriam que acabasse. Acabou. Ficou sem flor. Conheceu uma nova flor. Se encantou pela flor. Não sabe o que há, pra tanto, nos olhos da flor. Representa a perfeição. Mas pode ser que, insensível, diga que não. Triste pensar assim. Que não há, no mundo, alguém afim. Se, ao invés disso, disser que sim, festa. Festa no jardim. Festa, a princípio, sem fim.

Palavra

Evangélicos e católicos ignoram a palavra que defendem. Matam o próximo. Ateus atacam divindades que juram não existir. Espíritas recebem por fora. Indecisos condenam. Apesar de compartilharem incertezas inegáveis, acusam. Cometem falhas que apontam. Acreditam e destratam incrédulos. Ofendem e jogam pedras. É estranho. Atletas ridicularizam sedentários que malham atletas. Ruivas falam mal de loiras. Moreno, branco, preto e nordestino. Carioca. Gordo e magro. Careca. Cabeludo. Drogado. Homo, bi, hetero e simpatizante. Usuário de óculos. Protegem, de olhos fechados, características que carregam e partidos que apoiam. Times. Agridem com vontade. São alvo e flecha. São pessoas feias. Todas elas.

Remédio

Parece morto. Perdido, perturbado. Controlam pra não morrer. Saiu do coma e, atordoado, voltou à rotina. Tinha um piano que tocavam. Alguém, poderoso, mandou vender. Acabou a música. Magoado, não digeriu. Decepção que acelerou a deterioração do cérebro. Mais remédio. Psiquiatra, psicólogo, cardiologista e anestesista. Licença médica. Afastamento. Confuso, tenta esconder. De si próprio e de quem aparece na frente. É triste porque tá claro. Não vê que já não lê, não joga e não entende. Esquece. Passa dopado pelos dias. Cabeça que voa. Num tempo, espaço e cadência diferentes, não sabe bem de mais nada. Tá acabado.

Doce

Tem bala em casa. Doce. Planta, farinha e álcool. Não quer nada. Tá devagar, quase parada. Corre o risco de perder tudo. A validade das drogas, explícita somente nas engarrafadas, é um mistério. Podem ter estragado. Sem problemas. Se for o caso, esquece. Pensa em doar pra alguém. Amigo, conhecido ou usuário qualquer. No sentido tóxico da expressão, tá limpa. Não quis falar em sexo. Estuda, trabalha. Não reclama. Gosta da fase que vive. Viciou em outras coisas. Tá preocupada.

Lanche

Com saudade, quer ver de novo. Chega a doer. Seria inocente, descontraído. Nada que repoluísse águas passadas. Trocariam beijos e, no abraço, um tempo. Perguntas genéricas, temas atuais e olhos curiosos. Teria que sentir. Perceber, entre ações e reações, vontades e tendências. Pensa em desculpas, motivos. Cinema ou qualquer coisa. Lanche da tarde. Ficariam a sós. Diante da possibilidade de decepção imediata, protela. Projeta a retomada do convívio. Desdobramentos. Tudo dá nó. O que dá certo, no fim, não sabe. Convite pronto. Silêncio.

Serrote

Foram três planos. Fabrício apostou na força. Quando a sós, quebrariam uma das hastes. Falhou. O de Fernandes, baseado na velocidade, também deu errado. Disparariam assim que abrisse. O guardião, atento, impediu. Felipe pediu tempo. Acumularam matéria-prima e ingredientes nocivos à saúde humana. Fizeram um serrote e um veneno. Espalharam onde, certamente, Clóvis encostaria. Foi rápido. Passou a mão na boca e caiu morto. Cortaram a madeira. Escaparam. Na época, já cantavam. Comiam, bebiam e dormiam bem. Pés no chão. Precisavam decolar.

Picolé

No mundo que é bom, tem estrela. Roda gigante, vale verde e charrete. Arco íris e picolé. No ruim não. É diferente. No que é bom, tem caminhada e piquenique. Ar fresco. Água pura, flores e companhia. É agradável. Tem gente feliz. O sol é brando e a lua é cheia. Tem entrada, almoço e sobremesa. História pra dormir e beijo de boa noite. Braços dados. No mundo que é ruim, não tem isso. No bom tem. Tem gargalhada. Brincadeira, desenho e melodia. Harmonia. Vida longa e saudável. No ruim não.

Música

Não sabia que horas eram. Não tinha ideia. Assustado, ansioso. Tinha compromisso e o despertador, descarregado, desligou. Minutos de pânico. Se tivesse perdido, seria péssimo. Seria condenado. Prejudicaria pessoas que agiram de acordo com o combinado. Irresponsabilidade irreparável. Não tinha janela pra abrir. Desregulado, ligou o rádio. Só música. Ninguém por perto. Tensão crescente. Talvez tivessem vindo e, agora, putos da vida, sejam incapazes de perdoar. Marcaram às 9h. Loteria. Dezenas separadas por pontos verticais. Quanto tempo no passado. Num sono, deitado. Descobriu um jeito. Com medo de tomar ciência, baixou os olhos. Fim do pesadelo. Alívio. Dava até pra dormir um pouco mais.

Chave

Abriu um sabonete novo. O último. O velho, gasto, deixou na pia pra lavar a mão. Tava fino demais. Ficou triste. Achou que seria peça chave de mais banhos. Final melancólico. Pega, esfrega e pronto. Não passa onde passava. Queria morrer. Numa noite, de repente, voltou pro box. Colado no substituto. Grudados pra ganhar corpo, ensaboaram barriga, pernas e axilas. Retomou o gosto pela vida. Viraram um só. Às vésperas do desaparecimento definitivo, deteriorados, aproveitaram ao máximo. Escorriam juntos, felizes pelo ralo.

Tênis

Saiu na precipitação. Pingos grossos. Desprovida de guarda-chuva, cansada e apressada, não hesitou em, desprotegida, encarar a adversidade. Criança de colo. Molhou o cabelo, o corpo e a roupa. Tirou o tênis. Correu. Pra atravessar a rua, meteu o pé na poça. Chegou no lado ímpar. 115, décimo andar. No elevador, encharcada, apertou o botão. Desceram no segundo, quarto e quinto. Entraram no oitavo. Assim que abriu, disparou. Sangue que escorria. Choro alto no ouvido. Acendeu a luz e, sem parar no tapete, bateu a porta. Chuveiro, toalha e curativo. Carinho e cama. Beijo de boa noite.

Hospital

Quando precisou, foi ignorado. Achincalhado, agredido e roubado. Parou no hospital. Achava que, em situações extremas, seria protegido. Que seres do porte de Lanterna Verde apareceriam pra ajudar. Sumiram. Ao invés de patrulharem o bairro, que prossegue perigoso, brigam entre si. Por ego. Pela sensação de superioridade, abdicaram do propósito. Deixaram o mal à vontade. Em suas salas, fiéis aos princípios, vilões confabulam. Espalham capangas pelas ruas. Promovem guerras intergalácticas e exterminam inocentes. Nada de super-homem.

Ponto

Dormiu cedo pra acordar cedo, levantou na hora, tomou banho, escovou os dentes, mal tomou café, escovou os dentes, trocou de roupa, saiu de casa, chegou no ponto, esperou o ônibus, esperou o ônibus, pegou engarrafamento, pegou engarrafamento, desceu do ônibus, chegou atrasado, foi repreendido, trabalhou, mal almoçou, trabalhou, trabalhou, saiu do trabalho, chegou no ponto, esperou o ônibus, esperou o ônibus, pegou engarrafamento, pegou engarrafamento, desceu do ônibus, chegou tarde, mal jantou, dormiu cedo pra acordar cedo.

Relógio

Admira tanto a Reginaldo quanto admira Kobe Bryant, astro da NBA. Planejamento impecável. Pontualidade, mantimentos adquiridos com antecedência e vestuário adequado. Relógio amarelo. No cume da noite, alerta, interagia. Tinha amigos. Espécies de Shaquille O’Neal, Pau Gasol e Derek Fischer. Jogavam bem juntos. Nas dificuldades, uniam forças. Foram expulsos. Do lado de fora, impedidos, orientavam. Torciam. Diferentes entre si, primavam pelo companheirismo. Bebiam, cantavam e botavam a mãe no meio. Criavam polêmica.

Agulha

A bala na cabeça do pato, que não era o alvo, fica entre o bico e a testa. Vira e mexe sente dor. Parece uma agulha que enfiam até o talo. Demoram a tirar. Passeava com a pata quando, atingido, apagou. Cristina chorou. Assustada, levou pro hospital, explicou o ocorrido e pediu ajuda ao protetor das aves. Intervenção cirúrgica. Deu certo. Acordou seminu e, ainda confuso, cacarejou. Profissionais da saúde apareceram pra ver. Deram alta. Conversaram, no caminho de casa, sobre a vida. Tiros, mortos e feridos. No que abriram a porta, quis copular. Deu beijo, fez carinho e strip-tease. Beto, com enxaqueca, disse que não dava.

Carruagem

Tá estranho. Não satisfaz. Pra ser mágico, falta muito. Quer o jardim florido com sol ameno. Abraço que encaixa. Beijo de verdade, piquenique e céu azul. Amigos em festa. Sorrisos, filhos e carruagem bonita na tarde de outono. Na expectativa, passou o dia séria. Inteiro, do início ao fim. Sem força, sem dança e sem graça. Sentiu raiva, angústia. Nuvem cinza na cabeça, que, persistente, perseguiu. Conhece o caminho e sabe que tá errado. Que, desse jeito, não chega. Por mais que insista, que tolere circunstâncias, ainda sonha. É pouco. Precisa do olhar que invade a alma. Do arrepio e da cama. Chuva, frio e coberta.

Banco

Andou na rua e entrou no metrô. Pra abrir a janela e ser agraciado pela combinação de vento com visual, saiu pra ir de ônibus. Tinha, no ponto, tempo e tranquilidade. Ar fresco. Achou melhor que atravessar o buraco. Podia olhar pro céu, pros prédios ou pra massas de água. Focou no ambiente interno. Altura do banco da frente. Dominado pelo que, no momento, ocupava o cérebro, ignorou árvores e pássaros. Desprezou fisionomias. Preferiu pensar e viveu as consequências. Pra conceber, perdeu a paisagem.

Princesa

Ganhava quem escrevesse mais rápido. Fernanda disparou. Defendeu, sem pensar, a chacina de animais domésticos e agressões verbais contra seres inanimados. Contou a história da princesa imaginária. Disse que acumulava roupas e colhia algodão. Pra não ser eliminada, tinha que fazer sentido. Poucos minutos. Deixou escapar que, na dúvida, fica parada. Que sofre. Achou mais fácil no treinamento. Profusão de palavras que renderiam pontos. Na pressa, confessou que vai às lágrimas porque, no fundo, ama o menino da rua debaixo. Oração simples. Correria. Sem rasura e sem erros, falou mal da competição. Fez elogios à calma e à paciência. Prometeu que, dali em diante, comeria devagar. Fim. Comoção. Aplausos e gritos. Linhas de vantagem.

Combate

Depois de roubar, mentiu. Disse que não sabia. Evidências entregavam. Na esperança da confissão, perguntaram de novo. Tiraram fotos, anotaram e liberaram. Avisaram que ficariam de olho. De binóculos, vigiaram na moita. Posicionaram câmeras. Fez, na hora e do jeito esperado, o que imaginavam. Registraram. Prisão em flagrante. Apesar da culpa indiscutível, jurou inocência. Lavou a cara e proferiu ofensas. Declarou que, na verdade, não era o que pensavam. Defendeu o combate à crimes alheios.

Dianteira

A ferradura, menor que a pata, machucou o equino. Dianteira direita. Competiu com dores. Pra trocar, teria que voltar em casa. Largou em quinto, chegou em quarto e, de imediato, arrancou a chapa de ferro. Alívio. Jogou água e fez massagem. Só botou de novo porque descalço é pior. Saiu com pressa. No ônibus cheio, não tinha lugar. Viajou em pé. Puxou a corda e desceu com cuidado. Ao invés de galope, trote. Chegou destruído. Tomou banho, trocou de roupa e deixou a cadeira em frente ao sofá. Aplicou gelo na sola. Comeu pouco e, preocupado, dormiu mal. Precisava correr no dia seguinte.

Amarelo

Fica estranha com o par errado. Ri amarelo. Sabe que não combina e, se pudesse, esconderia. Não tem jeito. Perdeu o certo e não pode andar descalça. Apela. Quando olha, desgosto. Não é o que tinha. Suporta, com dificuldades, o peso da ausência. Faz de conta que tá bom. Que é assim mesmo. Sumiu na confusão, no tumulto. Tanta bagunça que, desorientada, deixou de ter. Lembrança nítida. Tamanho, cor e estilo. Usou na floresta. Na cama e na praia. Agora, desprovida, sente falta. Do encaixe. Da perfeição.

Varanda

Irritado com familiares, deu o troco. Esfaqueou a irmã e o pai. Na mãe, tiros. Empurrou primos no precipício. Queimou tios e o filho, mais velho, estrangulou. Asfixiou o mais novo. Avós afogados. Esmagou o crânio da sobrinha, chutou o neto e correu pra casa. Todos juntos. Não acreditou. Na varanda, de onde acertou a mulher, aplaudiam. Comemoravam o retorno. Ficou em choque. Pra acelerar a repetição da chacina, acionou a função giratória da metralhadora. Saiu de perto. Voltou e perdeu a cabeça. Viu que, ressuscitados, mandavam beijos. Saudavam o assassino.

Manga

Atrás do quadro, tinta branca. Azul no telhado. Falta estação no chuveiro elétrico. Tela nova, que, queira ou não, sempre pinta. Leite frio no copo d’água. Bermuda e chinelo. Masturbação, opcional, depois do café. Tem gente na rua. Teatro, festa e filme. Praia. Trabalho escravo. Fraude, vacilo e crime. Camisa, de manga, mal passada. Céu laranja e mato rosa. Fez de conta que o pianista, cínico, opinava. Teclas vermelhas. Intervenção silenciosa. Cadeira amarela e tijolo preto. Cabide verde. Moldura.

Patrocínio

As sardinhas entediadas, num papo mole, cogitaram voar. Correram atrás. Primeiro, de um snorkel às avessas. Depois asas e cartolina. Escreveram em letra de fôrma. Pra viabilizar o projeto, negociaram patrocínio. Comida, bebida e rede de proteção. Durante a substituição do sol pela lua, chegaram ao céu. Eram quatro. Uma em cada ponta. As que ficaram dentro d’água, sentadas em cadeiras de plástico, monitoravam. Torciam pelo sucesso. Lá em cima, já no escuro, acenderam as luzes. Mensagem nítida. Parabéns, tia Lúcia.

Passo

Sentiu de novo. Não esperava. Não queria. Ao invés de dormir, ensaia. Palavra por palavra. Decifra reações. Tenta entender. Evidências e sintomas, nítidos, assustam. É forte, constante. Parece o passado, só que pior. Não tem certeza. Aconselha a mente. A esquecer. Deixar pra lá pra não tomar outro tiro no peito. É incrível. É o que procura. Se não isso, nada. Faz tempo que cogita. No início, pouco caso. Autoproteção. Até que, de passo em passo, chegou perto. Grudou. Tomou posse. Agora, atingido, pena. Bicho bobo. Conta os dias.

Fantasia

O cabeça da tribo, conhecido como tal, sugeriu um luau. Ninguém respondeu. Contrariado, pensou em outra coisa. Não quis reclamar. Propôs uma festa à fantasia, de gente da cidade. Gostaram, mas, pra não dar o braço a torcer, ficaram quietos. Estavam com raiva porque tinham sido manipulados. Usados como força de trabalho num projeto que rendeu frutos somente pro idealizador. Errar de novo seria o fim. O cabeça, já preocupado, pediu desculpas. Disse que vacilou mesmo. Que, com a melhor das intenções, agiu mal. Aceitaram. De ternos, gravatas e vestidos, chegaram. Foram metralhados.

Abrigo

A metros da ilha, boiaram. Vinham de longe e, cansados, combinaram de parar pela última vez. Olharam pro céu. Conversaram sobre o que fariam depois que chegassem. Consumiriam peixes, água de coco e andariam pelados na areia fofa. Na véspera, caíram do balão. Voavam sobre o oceano quando foram atingidos pelo projétil perdido. Passaram o dia no mar. Como sabiam nadar, seguiram na direção da terra que tava à vista. Fim de papo, novas braçadas. Linha reta. Desnutridos e desgastados, não transaram de cara. Procuraram abrigo. Acharam, no mato, um bicho morto. Comeram cru. Improvisaram a cama de casal e fizeram bom uso.

Garganta

Gastou tanto que não sobrou nada. Nem um pingo. Virou, chacoalhou e, assustado, reconheceu. Acabou mesmo. Ficou mal. Sentiu dores no peito e nós na garganta. Olhou de novo. Lembrou dela inteirinha, à mão. Deixou que secasse. Sente falta. Não acreditou que o uso e abuso seriam capazes de extinguir o conteúdo. Corroía. Dias mais, dias menos, metia a mão por dentro. Arrancava e arranhava. Queria ter sido avisado. Que, próximo ao esgotamento, tivessem acendido a luz. Ficaria claro que cairia em desgraça. Que chegaria ao fim.

Garrafa

Rabanada no alho com esfirra de maionese. Pudim de empadão. Sorvete de ovo frito, suco de azeitona e carne de monstro. Comeu sem saber direito. Viu que tava na mesa e, sem frescura, ingeriu. Não achou ruim não. O estômago reagiu bem, acordou tranquilo e ficou na boa. Quibe de garrafa. Pasta de gelo e torrada de alpiste. Limpou o prato. Na casa dos pais, de noite, arroz com feijão. Frango grelhado, batata frita e farofa. Achou tão sem graça que, na refeição seguinte, revisitou a culinária insólita. Laranja corada. Sopa de amendoim na chapa, leite de peixe e salada de porco à moda boi. Sal de goiabada.