Direita

De longe, trouxeram a rocha. Quadrada, maciça e adequada à construção de muros gigantes. Carregaram na raça o peso desprovido de alça. Um de cada lado, agacharam e botaram as mãos por baixo. Fizeram força pra levantar. Devido à limitação motora das pernas, provocada pela altura dos joelhos, andaram devagar. A passos de lado, seguiram em frente. Olhavam desolados pro meio da estrada. De chão, esburacada e cheia de poeira, parecia infinita à vista que tinham. Terminaria num ponto afastado. Caminharam noites e dias. Pra descansar, repousavam a pedra no solo infértil. Pegavam de novo quando um propunha e outro concordava. Motivados pelo objetivo, concluíram a jornada. Mais magros, pálidos e cansados. Puseram no lugar e voltaram.

Textura

A lua, mais bonita que de costume, chamou atenção. Mãos no volante, olhos no satélite. Passava de carro. Parecia uma moeda gigante que flutuava no céu escuro. O feixe de luz, que caia na água, ia do fundo até o raso. Hipnótica. Cheia, leve e tão próxima quanto podia. Parou no sinal. Antes que o vermelho cedesse lugar ao verde, intensificou a observação. Percebeu as crateras por dentro e a linha bem definida da circunferência perfeita. A cor e a textura. Concebeu o enquadramento ideal. Da janela em diante, viu que, iluminada pelo sol escondido, brilhava no espaço que preenchia. Ponto fora da curva. Na reta. Nenhuma estrela, dentre tantas, apareceu. Entrou à esquerda e virou o pescoço pra despedida. Não tirou foto. Guardou a imagem no cérebro e, graças à fluidez do trânsito, chegou rápido. Numa casa antiga, mal cuidada. Feita de tijolo com cimento. Durante o período de permanência, tirou proveito da visita. Saiu satisfeito. Tanto que, na volta, distraído pelas lembranças, ignorou a paisagem.

Rabada

Infiltrado no grupo, de gente que só come grão de bico, tem um onívoro. Encarna o personagem. Critica carne bovina, peixe e porco. Fala mal de galinha, cordeiro, doce de leite e bolo de chocolate. O pessoal gosta. Tanto que, nas reuniões, é um dos que mais pegam no microfone. Começa pelo queijo prato. Passa pela pipoca, alerta contra a maionese e detona o macarrão. Em casa, toma refrigerante com paçoca. Bate pratos de rabada com agrião, cozido e angu com moela. Tem que disfarçar. A mulher interessante, com a qual pretende manter relações sexuais, é umas das principais defensoras da nutrição baseada na leguminosa. Diz que é rica em aminoácidos e serotonina. Que a ingestão traz felicidade. Pela postura proativa, conquistou a confiança da donzela almejada. Até um dia desses. Patrícia, preocupada, chegou nervosa na casa de Felipe. Viu a porta aberta, pediu permissão e entrou sem ouvir o advérbio de negação que saia da boca cheia. Geleia de mocotó com empadão de palmito.

Milho

Pelados, vivem na ilha. Catam coco do pé. Afastam insetos com varas de bambu verde e não transam por questões óbvias. Sonham com as etapas da penetração impossível. Pau mole num buraco fechado. Não tem como. Pra esquentar, dormem abraçados aos bichos de pelúcia que levaram pra viagem internacional. A antipatia recíproca, crescente até o acidente, pouco incomodava. Optavam pela companhia de pessoas que morreram. Quando viram como seria, pensaram em suicídio. Cada um num canto. Bruno, que não sabia fazer comida, ficava atrás de banana e couve. Elisa queria peixe. Por conveniência, se aproximaram. Um fazia fogueira e outro catava milho. Com tempo e possibilidade de exposição contínua de argumentos, eliminaram a discórdia. Superaram as aparências e tiveram vontade de acariciar, dar beijo e fazer sexo. Precisavam pôr fim ao excesso de masturbação. As três tentativas, debaixo da mangueira, perto da pedra e na água gelada, foram suficientes. Constrangimento mútuo e a certeza de que, dali em diante, daria errado sempre.

Crânio

Adriano não tem culpa. O cérebro, cercado pelo crânio, reage a estímulos. Ficou assim pelas circunstâncias. No final da transa dos pais, óvulo e sêmen entraram em contato. Gestação, nascimento e crescimento posteriores transformaram o nada no adulto. Atua em determinado ramo. Gosta de mamíferos marinhos e, desde criança, coleciona caneca de time. Compra arroz, feijão, roupa e, pra ouvir, discos. Não pode ser diferente. Pela estrutura biológica, é impelido ao que faz. Ossos entre as carnes, nervos e tecidos. Coágulos e sinapses. Durante o crime, controlou o tempo. Fugiu em silêncio. Concretizado o ato premeditado, deixou o flagrante no esconderijo. Varreu a casa e passou pano. Tomou banho pelado, botou cueca e leu histórias contadas por autores publicados.