Picolé

No mundo que é bom, tem estrela. Roda gigante, vale verde e charrete. Arco íris e picolé. No ruim não. É diferente. No que é bom, tem caminhada e piquenique. Ar fresco. Água pura, flores e companhia. É agradável. Tem gente feliz. O sol é brando e a lua é cheia. Tem entrada, almoço e sobremesa. História pra dormir e beijo de boa noite. Braços dados. No mundo que é ruim, não tem isso. No bom tem. Tem gargalhada. Brincadeira, desenho e melodia. Harmonia. Vida longa e saudável. No ruim não.

Música

Não sabia que horas eram. Não tinha ideia. Assustado, ansioso. Tinha compromisso e o despertador, descarregado, desligou. Minutos de pânico. Se tivesse perdido, seria péssimo. Seria condenado. Prejudicaria pessoas que agiram de acordo com o combinado. Irresponsabilidade irreparável. Não tinha janela pra abrir. Desregulado, ligou o rádio. Só música. Ninguém por perto. Tensão crescente. Talvez tivessem vindo e, agora, putos da vida, sejam incapazes de perdoar. Marcaram às 9h. Loteria. Dezenas separadas por pontos verticais. Quanto tempo no passado. Num sono, deitado. Descobriu um jeito. Com medo de tomar ciência, baixou os olhos. Fim do pesadelo. Alívio. Dava até pra dormir um pouco mais.

Chave

Abriu um sabonete novo. O último. O velho, gasto, deixou na pia pra lavar a mão. Tava fino demais. Ficou triste. Achou que seria peça chave de mais banhos. Final melancólico. Pega, esfrega e pronto. Não passa onde passava. Queria morrer. Numa noite, de repente, voltou pro box. Colado no substituto. Grudados pra ganhar corpo, ensaboaram barriga, pernas e axilas. Retomou o gosto pela vida. Viraram um só. Às vésperas do desaparecimento definitivo, deteriorados, aproveitaram ao máximo. Escorriam juntos, felizes pelo ralo.

Tênis

Saiu na precipitação. Pingos grossos. Desprovida de guarda-chuva, cansada e apressada, não hesitou em, desprotegida, encarar a adversidade. Criança de colo. Molhou o cabelo, o corpo e a roupa. Tirou o tênis. Correu. Pra atravessar a rua, meteu o pé na poça. Chegou no lado ímpar. 115, décimo andar. No elevador, encharcada, apertou o botão. Desceram no segundo, quarto e quinto. Entraram no oitavo. Assim que abriu, disparou. Sangue que escorria. Choro alto no ouvido. Acendeu a luz e, sem parar no tapete, bateu a porta. Chuveiro, toalha e curativo. Carinho e cama. Beijo de boa noite.