Desgaste

Feliz da vida por, entre outras coisas, ter aprendido a respirar pela barriga, resolveu fazer as pazes com a própria mente. Primeiro investiu na idéia de que lidava com uma segunda pessoa. Depois prometeu que, como amigo de verdade, seria mais tolerante e solidário. Pra se sentir melhor, propôs um acordo de redução das cobranças e ampliação da boa vontade. Garantiu apoio nos lapsos, brancos e bobagens. Em troca, pediu empenho e concentração. O interlocutor fictício, surpreso com a nova postura, entrou no clima. Disse que seria cuidadoso em relação aos pensamentos e admitiu sua parcela de culpa pelo desgaste. Dali em diante, deixariam frases e vacilos de lado. Um completaria o outro.

Pacote

Dormiu enquanto inventava desculpas com pouca variação no quesito grau de convencimento. Agora vem o mais tenebroso: uma caixa de papelão cheia de brinquedos velhos fechada com fita transparente. Boneco sem perna, carrinho quebrado e baralho incompleto. Também tinha um tabuleiro manchado, notas sujas de mentirinha e uma bola furada. A criança, escondida, de madrugada, foi de mansinho até a garagem. Arrastou a mesa, levantou a cadeira e, com a ponta dos dedos, alcançou o pacote que puxou de pouquinho em pouquinho até a inevitável queda. Sentou no chão com pressa. Sozinho no escuro, catou os objetos inúteis e guardou direitinho pra não dar bandeira. O nervosismo tomou conta quando a fita acabou.

Guilhotina

Prestes a ter a cabeça arrancada pela guilhotina, Ademar teve uma idéia inútil. Pediu ajuda de boca fechada. Pra Deus. A figura simbólica, carente de constituição física, não bate palmas. Falta pé, perna, braço e barriga. Pedras e tiros, caso disparados, passariam direto. Não come e não respira. Ainda assim, inativo, ausente, faz diferença. Foi a última esperança que morreu no caso de Ademar. Alvo de súplicas até o instante fatal, quando a lâmina gigante passou pelo pescoço e dividiu o corpo em dois pedaços desproporcionais, permaneceu trancado no imaginário da vítima. Nem cheiro de carne ou osso.

Visita

Comprou chocolate, morango e leite condensado. Ansioso pela chegada da visita, quis deixar tudo pronto pra iniciar os trabalhos imediatamente após a primeira troca de olhares. Cama no esquema, cueca nova e cabelo cortado. Demorou um pouco mais no banho e fez a barba. Motivado pela promessa de boa noite, deu um jeito na sala e tirou as tralhas do caminho. Um dia antes, na volta pra casa, já tinha pensado em todos os detalhes. Chegou a hora. E nada de campainha. Com dificuldade pra distrair a mente focada no que faria no momento chave, passou o tempo entre uma opção ou outra. De repente, ouviu barulho de gente andando pelo corredor. Levantou do sofá e abriu a porta.

Velho

Largou o branco de tampa azul porque nunca mais viu disponível. Um novo, parecido, passou a ser utilizado. O mal é que não tem a mesma eficiência. Comprovada, a qualidade do antigo jamais permitiria que tal incômodo viesse à tona. O efeito indesejado surgiu de repente. Devia ter desconfiado. Reconhecido o erro, botou na cabeça que acabaria com a saudade e saiu atrás do velho e bom. Quando finalmente bateu o olho no ex-companheiro, de acabamento e traços inconfundíveis, sorriu por dentro. Não precisou dizer nada.