Poltrona

Cansado do português, virou poliglota. Definiu como meta. Escolheu uma língua pra começar. Traduziu artigos, bulas e manuais. Tirou legenda de filmes e documentários. Aprendeu e pulou pra outra. Quando completou cinco, já mais velho, ficou feliz e resolveu viajar. Despachou a bagagem. Entrou no avião e inclinou a poltrona. Dormiu no trajeto, acordou e conversou em hebraico. Na despedida, sorrisos e saudações. Falou com o taxista sobre o caminho. Elogiou a recepcionista e a camareira. Fechou a porta. No quarto, leu avisos e pediu comida. Pensou no idioma materno e, animado, escreveu.

Couro

Quando, no relógio de Adalberto, o ponteiro maior enfrentou o menor, parou o tempo. Ficou surpreso. Mal orientado pelo mostrador, passou a vida sem cogitar a possibilidade. Até que, num instante, perdeu a paciência e mudou de rumo. Caminhou na direção contrária. Viu a mobília e acessórios estáticos. O cachorro latiu e as pessoas, que antes papeavam, continuaram. Não entendeu porque achou que virariam estátuas. Não é bem assim. Fazia força. As horas, de tão nervosas, tentavam atropelar os segundos. Permaneceu firme. Forte, resistiu por um período que, naquele momento, era incontável. Até a intervenção da pulseira. Reuniu os dois, explicou e mandou refletirem. Disse que os meses, anos e séculos deixariam de passar. Citou semanas e quinzenas. De acordo com a correia de couro, seria presente pra sempre. Pensaram no assunto. Brigaram, calcularam e decidiram. Àquela altura, em que ninguém esperava por nada, fizeram as pazes.

Chapéu

A meia calça, guardada, saiu de moda. Fica perto do macacão. As calcinhas velhas e o vestido de noiva, batido, ocupam a gaveta de baixo. A sandália perdeu o salto. Saias, shorts e tops, deixados de lado, apoiaram o chapéu de palha que, cansado do descaso, incitou a violência. Atacaram roupas novas. Mancharam a blusa e rasgaram o sutiã. Antes da festa, sujaram o casaco. Cortaram os dedos da luva, esconderam os cadarços e venderam os cintos. Queimaram o biquíni. Quando a dona chegou, atrasada, abriu o armário. De cara, viu a camisola molhada e a bota furada. Entrou em desespero. De tão perplexa, custou pra chiar. Tinha que sair. Botou uma jaqueta amarrotada que, pelas costas, chamaram de ultrapassada.

Curva

Os golpes, desferidos por terceiros, mataram Jonas. Defendia Eugênio. Pulou na frente da barra de ferro. Cabeça amassada, fígado magoado e osso quebrado. O colega, assassinado depois, levou um tiro. Coração perfurado. Lutavam porque achavam necessário. Atiraram bombas contra inimigos. Acreditavam que, apesar dos riscos, o esforço era válido. No dia do extermínio, saíram em bando. Sucumbiram ao longo do trajeto. Irmãos, filhos e amigos de infância. O pai, veterano, foi pego na curva. Cabeça decepada. Afiada pelo algoz, a faca percorreu o pescoço. Sangue, pele e pus. Passou pano pra usar de novo.