Diferença

Preta, gorda e feia, fuma maconha. É argentina e macumbeira. Manca e, na política, defende o adversário. Torce pra outro time. É loira, bi e pobre. Prostituta e velha. Tem tatuagem, piercing e cabelo ruim. Gosta de funk e pagode. Ex-presidiária, anã e disforme, tá com aids. É canhota e mora na favela. Usa pochete. Atacada sem mais nem menos, tenta entender. A diferença que faz.

Margem

Eliane não arrisca. O sanduíche é o mesmo e o marido, estúpido, não muda. Prima pelo que tá garantido. Em jogos de pôquer, costuma pedir mesa. Abandona mãos razoáveis, tem receio das boas e desconfia das ótimas. Com as imbatíveis, é o júbilo. Certeza absoluta. Paga pra ver, recolhe fichas e comemora. Só participa quando não vale dinheiro. A covardia, aliada à falta de ambição, estende circunstâncias. Faz tempo que quer respirar novos ares. Ainda planeja. Presa à margem de segurança, evita o perigo. Obstrui o ímpeto.

Solidez

Enxerga com clareza. Consulta datas de validade, notas de rodapé e placas de trânsito. Focaliza e, mesmo à distância, lê. Distingue pessoas e desce escadas. Atravessa a rua. Observa o fluxo pra, consciente, começar a andar. A nitidez propiciada pela eficácia do olhar trouxe benefícios. Discernimento pra tomada de decisões. Cores que pareciam misturadas escancaram solidez. Reflexos que não machucam. Vê, ao longe, fauna e flora. Cidade aos pés. Asfalto. Confere gravidade ao que era despercebido. Atento aos detalhes, meandros e conceitos, persegue o fim. Acende luzes pra sair do escuro.

Loja

O chapéu colorido ficou na cabeça de Flávia. Gostou mais do que do branco. Metade azul, metade amarelo, tava mais caro que os outros. Não comprou. Ficou indecisa e, pra evitar arrependimento, deixou pra resolver depois. Remoeu. Entre as alternativas, adquirir ou não, avaliou prós e contras. Pesou custos e benefícios. Voltou na loja. Provou de novo, chamou a amiga pra ver e pediu pra vendedora deixar separado. Disse que pretendia levar. Em casa, perguntou a opinião de pessoas com as quais convive. Uma falou pra ir em frente. Outra, pra refugar. Refletiu sobre o assunto e, no fim de semana, tomou a decisão.

Boneca

Falou de amor pra impressionar. Citou Rafael, amigo de infância. De quando viviam juntos, brincavam e comiam frutas. Nenhum beijo na boca. No máximo, carinho ingênuo e abraços. No aniversário dela, de onze anos, encheu um saco com bolinha de gude. Entregou entusiasmado e estranhou a reação. Distraída pelos convidados, deixou de lado, perto dos outros. Pegou um papel e escreveu um bilhete. Maria leu, gostou e agradeceu. Disse que, assim que fossem embora, daria atenção. Foi bom porque o menino relaxou. No fim da festa, trocaram a sala pelo quintal. Lembraram dos presentes e de quem tinha dado. Roupa da tia e boneca do pai. Brincos da avó. Jogaram búlica, mata mata e triângulo. Quando deu a hora, tarde da noite, prometeu que voltaria. De manhã cedo.