Volta

Morreu no sol quente. Tava doente, piorou e, mal atendida, sucumbiu. Enterraram de tarde. Calor, concreto e flores. Não tinha vento. Queriam sombra. Queriam água. Suados, lamentavam. Lágrimas misturadas. Se pudessem, ressuscitariam Luiza e iriam pra piscina. Ficariam felizes. A teriam de volta e fariam graça. Brincariam de apneia. Imersos no ambiente inóspito, naquele clima, acompanharam o processo. Afundaram o corpo e taparam o buraco. Quem foi pra casa, abriu a janela. Angústia e cansaço. Banho frio. Ventilador no máximo.

Alho

A kafta, comida, caiu bem. Comprou outra. Botou molho de alho, pimenta e mordeu. Deu um gole na bebida. Por intermédio do atendente, elogiou a cozinha. Disse que voltaria. Depois, entre a tarde e a noite, contou pra um casal de amigos e pra namorada. Defendeu a tese de que uma visita grupal ao estabelecimento seria uma boa. Falou no tempero. Tomate, cebola e pimentão. Deixaram a data em aberto. Um dia, passaram perto e, com fome, entraram. Foram simpáticos. Cumprimentaram recepcionistas, garçons e clientes da mesa ao lado. Pedidos iguais. Cilindros de carne moída e suco de abacaxi. Gelo à parte.

Arame

Tinha esquecido como era. Energizado, tranquilo. Tomou banho sem calça e descalço. Agora, sentado num banco vermelho, ouve o impacto da chuva no telhado de alumínio. Olha pro pedaço disponível do céu. Lâmpada vermelha, não pertencente a um prostíbulo, acesa num terraço. Nuvens camufladas num quase breu. Pelo vão comprido, achatado e ocupado por elipses de arame farpado, vê aparelhos de ar condicionado. Escuta pingos espaçados. Cadência calma. De olho fechado, parece até beira de rio. Correnteza que passa pelo cano de PVC.

Sabor

Não caiu nenhuma lágrima. Tá acostumada, calejada. Quando é assim, espera. Tempo que cura. Não importa. Não adianta bater a cabeça na parede chapiscada. O que tem pra dizer, pensa. Não divide. Tem vontade e tem medo. Melhor não. Esperança que guarda. De um amor bom, completo. Descomplicado e desimpedido. Mais felicidade e sorrisos. Menos tristeza. Menos angústia. Menos desgosto e mais sabor. Alegria, cristalina, a perder de vista. Porção generosa de paz. Mais paixão. Mais emoção. Ternura, cumplicidade e equilíbrio. Tudo isso junto. Num lugar perfeito, com a companhia perfeita e confetes. Morango e chocolate.

Genética

Osvaldo, confiante, calculou o raio. Multiplicou por dois e marcou a c com um xis. A seguinte, sobre conjuntos, pedia a interseção. Animais e frutas no enunciado. Regra de três, clima no Oriente Médio e política no Brasil. Terremotos. História depois. Revoluções, golpes e tratados. Muita guerra. Reações químicas, magnetismo e espelho. Genética e botânica. Na de português, junto com literatura, crases e verbos entre romances e poesias. Redação pra fechar. Tema atual e limite de linhas. Usou o rascunho. Gostou, passou a limpo e foi embora. Em casa, de imediato, questões discursivas.

Cólera

Agnaldo sentiu raiva. Quis responder, agredir e explodir. Arrancar a cabeça. Desconsiderado por quem amava de paixão, entrou em desespero. Andava pros lados, pra frente e pra trás. Resmungava. Com os olhos marejados, respirava com força. Pensava nas palavras e gestos que usaria. Em como faria pra afundar a tal pessoa num buraco cheio de lama suja. No auge da cólera, disse palavrões em voz alta. Mesmo que a reação brutal e imediata parecesse justificável, preferiu esperar. Se conteve. Respeitou a possibilidade de arrependimento. Até que, depois, a fúria virou desdém. Ao invés de gritos e revolta, silêncio. Afastamento. Não precisou brigar, orientar ou desabafar. Deixou daquele jeito. Resolvido.

Tampa

Deixou o copo sujo de suco em cima da pia. Foi embora. Quando voltou, interrogada por Adriano, pediu desculpas. Disse que prestaria atenção. De tarde, esqueceu o prato na sala. Adriano recolheu. Lavou, secou e guardou. Ficou puto. Depois do banho, distraída, pendurou a calcinha no box. A toalha, molhada, jogou na cama. Foi difícil pra Adriano. Num suspiro, superou. Nem falou nada. Mal deram boa noite e dormiram. Ela, antes dele, acordou. Deu a defecada matinal e não deu descarga. Voltou pro quarto. Adriano, com vontade de mijar, levantou a tampa. Viu e sentiu. Com raiva, apertou o botão. Esperou a sucção, fez o dele e apertou de novo. Lavou a mão. Secou. Abriu a porta e perguntou se Tânia tava de sacanagem.

Volta

Cansou da oscilação. Oscila muito. Cansa muito. Intermediários, melhores e piores momentos. Revezamento ininterrupto. Todo dia. Prefere morrer nos escombros. Aí passa. Fica tão bem que, pra lembrar, grava. Fecha os olhos, sente e absorve. Usa a recordação no marasmo. Pra evitar a desistência. Pelo que é mais ou menos, que não tem graça nem desgraça, passa batido. Segunda opção. Não consegue porque não dá. Algo acontece pra um dos lados. Pro encantado ou pro caos. E volta. E volta. Quer que pare, que continue e que volte. Não grita. É infinito. Que nem poesia, canto e conto. Balé do começo ao fim. Precisa ouvir. Imaginar é pouco.

Pedra

Fica escuro no buraco fundo. Caem sem querer. Desatentos, passam reto pelo aviso rente à cavidade. De dia é melhor. À noite, no breu, tateiam. Procuram uns aos outros e as coisas. No dia que o bombeiro chegou, acharam que seriam salvos. Tem gente misturada a animais e plantas. É longe do comércio. Não tem água, luz nem mobília. Wellington gosta. Descobriu depois. Disposto a escapar, pegou a corda. Lançou pro alto e, agarrado à pedra, subiu. Sentiu falta. Ficaram felizes quando voltou. Elogiaram a aparência, perguntaram sobre as novidades e pediram a corda emprestada. Disse que não era dele.

Futuro

Atrás das grades, pensativa, perdeu a hora. Saíram pro almoço. Comida, céu e sol. Refletia. Poderia ter refugado ou, ao invés de na cabeça, ter mirado no joelho. Quis mesmo matar. Tava com tanta raiva que, pra garantir, descarregou a arma. Foi presa na semana seguinte. Roupa do corpo, cara limpa e pavor. Conheceu Cláudia e Lúcia. Latrocínios. Contou a história e explicou os motivos. Combinaram de, no futuro, irem juntas na justiça. Levariam um projeto de lei. Quando voltaram, perguntou se tinha sido bom. Reponderam que sim. Que teve batata frita, arroz, feijão e peixe. Sentiu raiva pela distração. Sentiu fome. De noite, debilitada, apressou o carcereiro.

Caldo

Os camarões mortos, dentro da empada, receberam elogios. Nadavam no mar calmo de uma praia deserta. Tinham a mesma idade, tamanho e cor. Não eram irmãos. Resultados de diferentes cópulas, nasceram próximos e fizeram amizade. Brincavam de dar caldo quando puxaram a tarrafa. Tinham nomes completos. Os pais de ambos, bem-humorados, escolheram a dedo. Ouviam frases contraditórias. Uma pedia paciência e a outra não. Dizia que era pra ontem, que a vida era curta e que podiam morrer amanhã. Foram juntos pra costa desconhecida. De mãos dadas, atravessaram a corrente. Curtiram e voltaram. Foram pegos de surpresa numa tarde da estação em andamento. Fervidos, descascados e introduzidos na massa. Tinha frango na coxa, carne no pastel e linguiça no pão. Salada de alface.

Helicóptero

Transaram durante o filme. Preliminares no começo, penetrações no meio e deleite nos créditos. Aventura banal. Um herói, sem super poderes, que parecia ter. Violência. Passaram batidos pela explosão. Perderam a morte da filha e a queda do muro. Nessa hora, enroscados, agiam e reagiam. Sussurravam elogios. Quando o mocinho foi torturado, Angélica tava algemada. Também se contorcia. Foi libertada na cena do helicóptero. Trocaram de posição. Charles, quieto e de olhos fechados, não ouviu o tiroteio. Ficaram de pé e deitaram de novo. Sincronizados com a película, terminaram juntos. Não viram nada.

Mentira

Descalço com a vara na mão, parou na beira do rio. Anzol, molinete e isca. Acharam estranho. Frequentadores de longa data, que jamais presenciaram tal atitude, acompanharam pra entender. Não tinha peixe e tinha uma placa pra avisar. Forrou o chão, tirou a bermuda e, de sunga, manteve a camiseta. Jogou a linha na água. Um banhista não aguentou e foi lá. Discorreu sobre a ausência de animais aquáticos. Depois de ouvir, disse que não tinha problema. Que era mentira e que, apesar do que pensavam, pegaria um linguado. Voltou pra barraca, reproduziu o diálogo e sentou na cadeira. Ficou atento. Jorge, tranquilo, sentiu a pressão e puxou. Ciro suou frio.

Almofada

Levantou pra fritar os ovos. Na televisão, qualquer coisa. O primeiro, assim que quebrou, jogou na frigideira. O segundo também. Não houve um terceiro. Fogão, óleo e sal. Tirou rápido pra comer mole. O arroz, da geladeira, pro micro-ondas. Na sala, almofada embaixo do prato. Só usou garfo. Esqueceu da água e voltou pra cozinha. Da cumbuca, cubos pro copo. Queria gelada. Banho frio. Dormiu e acordou. De estômago vazio, pão e leite. Louça.

Casaco

Ficou mais velha de noite. De casaco na calçada, longe do meio fio, viu a dupla. Bonés pra trás. Foi imediato. Pensou na profusão de sensações às quais seriam submetidos ao longo do porvir. Nas vidas que teriam. Oscilantes. Vão, com certeza, morrer de alguma coisa. De qualquer coisa. Cabeças que mexem com nervos e corações que, exigidos, sofrem danos. Pediu passagem. Diante do sinal, mão no bolso. Olhos vidrados e raciocínio besta. Matemática simples. Menos futuro.

Extremo

Escrevia sem parar. Frase atrás de frase. Entre vírgulas e pontos, histórias. Tragédias, comédias e variações. Personagens principais. Coadjuvantes em determinados locais submetidos às escolhas de cada dia. Aos climas. Na chuva, casacos e capas. Sungas no sol. Tops. Érica, Júnior, Geraldo e Fabiana. Sérgio e Adriana. Deixou claro que seriam usados. Levados ao extremo. Do melhor, com períodos de calmaria, ao intragável. Atualidades, previsões e passado. Tudo na cabeça.

Travessia

Perdeu Alice de vista. O afastamento gradativo, iniciado com a travessia da rua, resultou no desaparecimento completo. Caso andasse pra frente, alcançaria e veria de novo. Não quis. Combinaram que seria assim. Precisavam despistar o conhecido em comum que vinha a passos largos. Mal quisto por ambos, tava de tênis e camiseta lilás. Short preto. Sugeriu que fosse pra longe enquanto simularia o amarrar dos cadarços. Chegou como previsto. Passou apressado, olhou pra placa de trânsito e seguiu na direção dos carros. Perfeito. Nenhum contato visual. Minutos depois, onde escolheram, comeram pastel e beberam refrigerante porque não tinha caldo de cana. Saíram alimentados.

Barulho

Fabiano dorme na rua. Na porta da loja. Coberto com pano velho e sujo, com fome, pede ajuda pra quem passa. Cheira mal em demasia. Dos bueiros, de madrugada, roedores brotam. Convivem. Observa a busca por comida e bebida. Cochilava quando Pedro e Ricardo apareceram bem vestidos e perfumados. Despertou com o movimento. O barulho dos ratos que, assustados, voltaram pro esgoto, foram sucedidos pelos comentários dos pedestres. Compararam o ambiente ao da cidade natal de Bruce Wayne. O mendigo, que ouviu, gritou. Confirmou a grandiosidade da imundície. Na volta, usaram a paralela.

Jardim

Cercado pelo verde do jardim florido, bem de saúde, amanheceu. Amante do lado. Comida em cima do pano e tempo aberto. Transaram de novo. Sem pressa. Escreveu, no coração desenhado na árvore, Diana e Douglas. Passaram o dia deslumbrados. Ninguém viu porque, nas redondezas, não tinha ninguém. Nuvem solitária de formato engraçado. Entre gracejos, carinho. Desdobramentos. Sorriso destravado, beijo encaixado e harmonia. Corriam atrás um do outro. No frio agradável, de tarde da noite, coberta pra dois. Entrelaçados.

Tamanho

Não podia errar em agosto. Chegou nervosa. Comprou bala, passou no banheiro e subiu. No andar de cima, tensa, viu o potencial algoz. Tinha cor, tamanho e fisionomia. Conversava em grupo. Entrou na sala e, a tempo, finalizou os preparativos. Deu a hora. Já de cara, fez diferente do que deveria ter feito. Pequeno deslize. Curto e grosso, mandou parar. Mostrou o certo de má vontade. O crescimento da insegurança, diretamente proporcional à aproximação da parte mais difícil, levou Tânia ao desespero. Vacilou feio. Veio Mário. Chamou de idiota, burra e imbecil. Tola e toupeira. Em outra época, mais tranquilo, toleraria.

Fileira

Depois da morte, foram pro enterro. Fecharam a caixa de madeira. Botaram no buraco, esperaram um pouco e tacaram areia por cima. Amigos e familiares, tristes, acompanharam. Foi de tarde, com sol e céu azul. O filho chegou atrasado. Tarde da noite. Cemitério fechado. Inconformado, pulou o muro e caiu perto da cova de um desconhecido. Ligou a lanterna. Leu, numa das lápides, o nome do pai. Coincidência. Continuou até que, na segunda fileira, achou o túmulo da mãe. Deixou o bilhete embaixo das flores. Pedia desculpas pela ausência.

Calçada

O niterói se ofereceu. De porta aberta, na frente de Otávio. Vazio. O rapaz, que tinha acabado de chegar, não quis pegar. Passou a noite em claro. Ciente de que é mais um que pensa o que ninguém mais pensa, concluiu, no íntimo, que Raíssa é o mundo. Que a vida, no fim, é o que acaba acontecendo. Sequência de possibilidades concretizadas. Viu, na calçada oposta, esperança. Gozo, riso e choro. O que presta. Com muita vontade, mijou na rua mesmo. Escondido. Condenou a atitude. Acredita que isso, de fato, prejudica o meio ambiente. Abotoou as calças e foi pro ponto. Esperou e esperou. Entrou no guadalupe.

Acordo

Sandra fez confusão. Chamou vaidade de amor próprio. Egoísmo de orgulho e afeição, ainda pulsante, de história. A cabeça não tava boa. Hélio chorou. Tentou impedir, apelou e recuou. Ele, que superou porres, distúrbios e espécies assexuadas de traição, prosseguiu firme, fiel ao acordo que tinham. Insistiu pra que não quebrasse a palavra. Ficou de cama. Indisposto, desiludido e só. Mais magro. Doeu porque pensou que era fora do comum, que seria pra sempre e que havia sinceridade nas declarações que ouvia. Foi ingênuo. Achou que a reciprocidade e cumplicidade prometidas seriam exercidas. Que, sendo verdadeiro, não acabaria. É igual aos outros. Quer que reparem na vida que leva. No café que toma, na quantidade de açúcar e na temperatura da água. No jeito que corta laranja. Alguém preocupado com a demora. Com eventuais espirros e topadas. Agora tá melhor. Ganhou peso e, de dia, conheceu Flávia. Flores novas.

Éter

O frango, o porco, o peixe e o boi, organizados, trancaram a porta. Fizeram o cachorro de refém. O homem arrombou. A ave e o suíno, atentos, agiram rápido. Um pulou na cabeça e o outro passou um pano com éter no nariz do invasor. Coube ao escamoso amarrar Alex. O bovino, paciente, esperou que acordasse. Deu um tapa na cara e explicou. Mandou o animal de estimação parar de latir. Disse que, pra quem não é comida, a vida é fácil. Cortaram os braços e botaram na brasa. Jogaram sal grosso. Cheios de fome, terminaram de esquartejar e assaram todas as peças. A tainha comeu a bunda.

Estrago

Pisou no cocô humano. Entrou no carro e, de imediato, repreendeu o carona. Achou que tinha soltado gases pelo ânus com as janelas fechadas. A acusação foi refutada. Pressionados pelo forte odor, elencaram possibilidades. Olhou embaixo do pé direito, comemorou a ausência de fezes e conferiu a sola do esquerdo. Tava ali. Na embreagem e no estofado. Saíram do automóvel. Tirou o grosso e voltou em casa pra buscar produtos de limpeza. Começou pelo tênis. Escovou o pedal e perfumou o interior do veículo. Não foi suficiente. Como precisavam ir, encararam. Pensou no autor. Em como estaria pra, numa evacuada, causar tanto estrago. Pegaram engarrafamento. Mais de três horas. Dirigiu atordoado. O amigo, com a camisa por cima do nariz, estilo ninja, tentou dormir. Chegaram na merda.

Reforço

Virou bicho quando, na sala de injeções, foi agarrado pelas patas. Mostrou os dentes. Reagiu mal à aproximação da seringa. Dócil, ficou agressivo. Partiu pro ataque. Arranhou, gritou e se debateu. Xingou todo mundo. A equipe médica, responsável pela vacinação do animal, pediu reforço. Mãos na cabeça e no peito. Controle total. Enfiou a agulha até o talo, empurrou o êmbolo e acompanhou a inserção gradual do líquido teoricamente benéfico. Terminaram o trabalho. Trocaram cumprimentos e ordenaram a entrada do próximo. Foi embora em silêncio.

Violeta

Viu, no arco-íris que apareceu de tarde, uma cor a mais. Eram oito. As de praxe e ela. Diferente, inesperada. À direita da violeta. Coçou os olhos pra abrir de novo. Continuava lá, nítida e inédita. Caiu bem. Combinou tanto que, de cara, apaixonou. Passou a achar o antigo insosso. Queria que fosse assim desde sempre. Novidade doida, surgida do nada. Deu o brilho que faltava. Que precisava. Andava descolorido, apagado. Parecia morto. Foi, providencialmente, recriado.

Pilastra

O morcego, perseguido pela gaivota, entrou na caverna. Parou atrás da pilastra. O pássaro pousou. Não viu o mamífero, esperou um pouco e foi embora com raiva. A potencial vítima, satisfeita pelo sucesso da fuga, deitou no colchonete. Precisava dormir. Não sonhou e, quando acordou, espreguiçou. Comeu duas torradas, meio mamão e bebeu um copo de leite. Saiu atento. Passou pelas cabras, vacas e cavalos. Saudou o coelho. Percebeu que o cachorro, machucado, latia baixo. Ofereceu ajuda. Ouviu o relato, diagnosticou e fez um curativo. Deu de cara com o bicho da noite anterior. Capturado, voou de carona até a cabana da ave mãe. Ficou com medo. Negou acusações e pediu misericórdia. Não tinha roubado a galinha.

Palavra

Marina, melhor que Maria e Mariana, chamou a atenção de Mário. Descia as escadas rumo ao térreo. Em prol da construção de um relacionamento afetivo entre ambos, o rapaz interrompeu o deslocamento. Pediu a palavra. Apresentou a si próprio, justificou a aproximação e acompanhou a reação. A menina foi simpática. Conversaram sobre particularidades e demonstraram interesse nas histórias que ouviam. O jovem então, educadamente, pediu um beijo na boca. Obteve a concessão e foi em frente. Acrescentaram abraços, fungadas e carinhos diversos. Só afastaram as cabeças por necessidade fisiológica. Deram as mãos.

Conta

Ninguém. Ninguém tem carinho por mim. Quer saber de mim. Se importa com o fato de eu estar vivo. Ninguém me procura. Torce por mim ou prestigia minha existência. Ninguém reflete sobre mim. Ninguém lembra de mim. Ninguém se interessa por nada relativo a mim. Ninguém me ajuda. Ninguém vê o que faço. Ninguém tá aí pro que penso, pro meu jeito ou pro que tá no meu prato. Ninguém me acompanha. Ninguém diz nada pra mim. Tô só. Isolado. Num tormento desmedido. No breu mais escuro. A fim de morrer por minha conta, não enxergo ninguém. Ninguém que se incomode. Quem lamente ou quem chore. Não há preocupação. Quem faça questão. De verdade, ninguém.

Perfume

Pra sair com o outro, botou a calcinha mais sexy. Bem pequena. Lingerie rosa, enfiada na bunda. Ganhou no aniversário de casamento. Dez anos depois de dizer que sim. Usou o perfume guardado, a blusa decotada e a saia preferida do marido. Uma curta, colorida, adquirida na viagem que fizeram pra espairecer. Voltaram de mãos dadas no carro. Juras de amor eterno. O amante comeu a esposa de tudo que é jeito. Com preliminares, força e requintes de crueldade na ótica do homem traído. Perdeu o controle quando descobriu.

Prato

Gosta de chuchu porque ajuda a comer camarão. O crustáceo, sozinho, dá coceira, náusea e inchaço na garganta. Quando misturado ao alimento mal quisto até a descoberta, é inofensivo. São inseparáveis pra Régis. Num dia de sábado, à noite, viu a janta da mãe. Arroz com os dois. Deu água na boca. A dele, ovo frito, tava boa, mas cresceu o olho na alheia. Pediu pra provar. Dona Ana, preocupada, negou. Disse que não tinha necessidade e que não arcaria com as consequências. O filho insistiu. Tanto que, pra que parasse, deixou. Deglutiu colheres de sopa. Nenhuma reação adversa. Surpreso, montou um prato exclusivo. Ficou tão satisfeito que passou a elogiar o vegetal.

Tijolo

Na frente, só via verde. Fumaça verde. Carros e ônibus. Asfalto verde. O líquido, vermelho, era verde. No céu verde, lua verde. Água do mar. Pintou o quadro com a tinta azul. Verde sobre verde. Pele e cabelo, verdes. Casa de tijolo verde. Camisa verde. Chega de verde. Ficou puto com o verde. Acordava e era verde. Odiou o verde. Passou o tempo. Só tinha o verde. Fez as pazes. Passeio no parque. Olhos abertos. Ainda verde.

Biscoito

Ninguém subiu na árvore pra salvar o bicho. Era preto. Se fosse branco, eu ia, disse o jovem de casaco verde. A moça do lado fez coro. Dois coroas e uma criança ficaram quietos. Na cidade, cheia de supersticiosos, colecionavam pés de coelho. Batiam na madeira. No caso do socorro ao felino, tinham medo de que, por falta de sorte, quebrasse um galho. O gato miava. Cheio de fome e sede, queria descer. Um forasteiro de boa índole, ignorante em relação às crenças locais, ousou bancar o herói. Foi obstruído pela massa. Deixou passar. De madrugada, com um amigo e uma escada gigante, voltou ao parque. O animal entendeu. Usou os degraus, bebeu água e comeu o biscoito que trouxeram.

Guidão

Voltava pra casa de bicicleta. Confiante, apertou o ritmo e convenceu a si próprio a fazer um teste. Quando chegasse na curva, embalado, tentaria imitar campeões da motovelocidade. Era pra direita. Entortaria o guidão, aproximaria o joelho do asfasto e retornaria à posição inicial. Passou do ponto e levou um tombaço. Caiu no chão desprotegido. Quem viu, achou engraçado. Levantou doído, envergonhado e todo ralado. Tinha um aniversário pra ir de tarde. Tava sol e o evento, informal, seria ao ar livre. Levaria sunga pra entrar na piscina. Não dava mais. Na gaveta de remédios, achou mercúrio, merthiolate e própolis. Encarou a ardência como punição merecida e foi pra festa de calça jeans.

Inércia

Comprou um telescópio pra ver o astro. Abriu a janela, posicionou o equipamento e puxou a cadeira pra sentar. Olhou pro céu e achou normal. Lua, nuvens e planetas a postos. A estrela que esperava, batizada de Lara, chegaria lá pra meia noite. Eram oito ainda. Deixou tudo pronto. Estudou um pouco mais e, às onze, iniciou a vigília. Viria da direita pra esquerda e ficaria estática entre Marte e Júpiter. Depois sairia da inércia e aceleraria rumo ao destino que tinha. Assim foi. Uma da manhã. Observador atento ao passeio do corpo celeste. Na fase imóvel, encantado, fingiu que era uma exibição só pra ele. Não esquece. Acompanhou o percurso inteiro. Até o instante em que Lara, muito longe, sumiu do campo de visão.

Palha

O panda macho, com frio, corria na neve. Vinha em velocidade de cruzeiro quando avistou o homem abominável. Cumprimentou de longe e deu meia volta. No iglu, pra esposa, disse que tava tudo bem. Foi pro outro lado no dia seguinte. De óculos escuros e chapéu de palha, casaco e meia grossa, contornou o lago congelado. Saudou pinguins e ursos. Pra foca, contou a história da véspera. Bolaram um plano. Forjariam uma pesca de salmão e deixariam os peixes esquecidos no balde. Na hora que, diante da oportunidade, viesse roubar os animais ricos em ômega 3, seria envolvido pela tarrafa e pendurado de cabeça pra baixo. Combinaram com os de carne rosada. Não usariam anzóis.

Simples

Talita aposta que, antes de separar, já tinha beijado a atual. Supõe que exista. Ninguém disse nada. Era atencioso, preocupado e apaixonado. Agora, pós-mudança repentina, é indiferente. Esqueceu rápido demais. Não procura e, quando atende, é evasivo. Nega convites outrora irrecusáveis. A explicação é simples. Outra mulher. De namorada nova, despreza a antiga. A ex, magoada, imagina. Sofre de pensar. Lembra dos bons tempos e nutre esperanças. De acordo com a tese que defende, Guilherme esconde. Conserva o relacionamento na esfera privada. Não divulga.

Oferta

Pro coração, tá claro. É o cérebro que atrapalha. Faz conta, projeta e explica. Reprime o instinto. De acordo com o vermelho que bombeia, não tem o que pensar. Basta recusar a oferta. Ficaria feliz, orgulhoso e daria um jeito. Os miolos divergem. Consideram a atitude intempestiva e inapropriada. Dizem que, apesar de nociva a curto prazo, a aceitação dos termos é redentora a longo. Deu ouvido pros dois. Convencido por indícios pró-negativa, pendeu pro lado do alojado no peito. Coincidências animadoras pareciam escancarar o caminho certo. O intelecto, na dele, teve calma. Esperou a euforia passar. Condenou a supervalorização do acaso, levantou questões e recomendou juízo. Lavou as mãos. Na esperança de desempatar, consultou os demais componentes do organismo. Silêncio. Pele e ossos retraídos. Intestino quieto, bexiga calada e baço mudo.

Período

Na sentença, cabia gasto ou gastado. Particípios passados de um verbo só. Problema grave. Escreveu com gasto. Leu, releu e apagou. Reescreveu com gastado. Das duas, uma. Vinha bem até empacar. Na história, de adultos ao longo do período retratado, descrevia locais e narrava ocorrências. Parou pra urinar. Bebeu água e, quando voltou, quase esquecida, regressou ao dilema. Não queria ser injusta com expressão nenhuma. Pensou mais. Cogitou a utilização de sinônimos. Mesmo consumido, que cairia bem, dispensou. Adiou a decisão. Tomou outra: à palavra derrotada, daria vez na próxima. Deixou ambas de sobreaviso.

Massa

Grudados, foram ao prato. Blocos de macarrão. Comeu pra não jogar fora. Ofereceu pro amigo que não quis, abusou do queijo ralado e, após repetecos, havia extinguido a quantidade produzida. Fez errado. Achou que, antes de cozinhar, precisava lavar a massa crua. Tentou consertar. Ficou transtornado. Descrente da necessidade de existir, amargurado, investiu no autoflagelo. À intempérie culinária, agregou insatisfações. Relacionamentos, trabalho, família e amigos. Distrações que não deveria ter. Taxou a si próprio como feio, burro e imprestável. De bom, nada. Nenhum orgulho. Não se matou porque é contra o suicídio. Diz que é perigoso. Na semana seguinte, no mercado, comprou pronto.

Número

Partida em dois, perdeu o valor. Caiu no chão e pisaram. Não repararam porque, entre folhas, parecia outra. Ricardo que viu. De longe, sentado no banco, olhou pra árvore. Metades compatíveis. Mesma cor, número e animal. Na tentativa de recuperar, usou materiais de escritório. Pegou a parte de baixo, tratou e grudou na de cima. Ficou decepcionado porque não deu certo. Depois de um tempo, por algum motivo, separavam de novo. Jogou no lixo. Constituíram, durante longo período de coesão, um inteiro relevante. Desataram por acidente.

Cidade

Não queria morrer naquela hora. Tava animada. Tinha saído, beijado um cara e, na manhã seguinte, seria a festa. Teve medo quando atravessou a rua. A cidade, vazia, ameaçava. Foi ao ponto, pegou o ônibus e chegou bem. Precisava dormir pra acordar cedo. Agitada, deitou. Cochilos raros. Barulho na cabeça. Desligou o despertador e levantou adiantada. No evento, extasiada, foi às lágrimas. Depois acabou. Virou passado também. Diante do que é apresentado, fraqueja. Não faz questão. Agora, de volta ao normal, empacotaria sem problemas.

Voz

Impelido à existência, apareceu em prantos. Não fazia idéia. Do planeta, reino ou espécie. Da hora e do clima. Sujeito ao que fosse, desnorteado, brotou no ecossistema. Não sabia do tamanho e do peso. Nem da cor, sexo ou origem. Podia ser invertebrado, planta ou pássaro. Depois viu que era humano. Entendeu que pensava e, por isso, conferiu superioridade. Descobriu de onde era e conheceu a família. Tom de voz, cabelo e quantidade de dedos. Desenho do rosto. O tipo sanguíneo, AB, e hormônios predominantes. Não virou gente boa. De propriedades inatas, carrega um pacote. Deprecia o do próximo.

Chave

Adilson passou de fase. Matou o gorila de três metros, pegou a chave e entrou na caverna. Ganhou pontos. A próxima, mais difícil, leva pra última. Uma vida só. Duas moedas, uma pistola e um lança-chamas. Começou com a roupa do corpo. Abateu a cabra de três patas e, como recompensa, tomou posse do estilingue. Atirou no morcego de três quilos. Novo prêmio. Chegou a ter metralhadoras, granadas e armadura. Perdeu no mestre da quinta. O pato, de três bicos, cuspia fogo, ácido e vidro moído. Teve que subir na escada com a bigorna de prata. Do topo, mirou e largou. Deserto, selva, cidade, campo e céu. Tempo ameno. Chuva torrencial na neve. Luva e gorro, no sol quente, contra os bárbaros de três cabeças. Bebeu água na nascente do lago. Pra superar a enguia de três olhos, usou estratégia. Saltos, cambalhotas e ataques repentinos. O chefe final, ainda distante, fez Catarina de refém. Cavou buracos pra plantar o mal. Separou armas, acionou capangas e preparou armadilhas. Tem três estômagos.

Tática

Se afasta quando vem gente. No carnaval, quer, sóbrio, conquistar alguém sóbrio. Flagrou a observadora. Enquanto olhava, lembrava do que era. Tá velha. Parecia triste de ver que, com o tempo, envelheceriam. Circunstâncias. É você e você mesmo. Não se engane. Como na mágica, música. Não quer outra. Tática de roçar. Abismado, reparou. Ficou pra baixo. Em algum momento, todas percebem. Conhecem bem. O beijo insosso, forçado, que não tem graça. Devia ter esquecido. Pra equilibrar, afrouxa o passo. Chapéu no chão. Assunto. Tantas qualidades que, de repente, encantamento. Esperança com apreensão.

Córrego

Os caubóis que escrevem cartas, no geral, são românticos. Terminam com data, hora e autoria. Têm inspirações. A de Arlindo acorda cedo e passa distraída pelo córrego. Não sabe que o boiadeiro, sentado à margem, é o responsável. Entrega às escondidas. Roberto é extrovertido. Dá as caras, canta e faz desenhos. De corações que se completam. Sidnei, do contra, fala de outro assunto. É um dos poucos. Os demais, fiéis à fama, exprimem afeto nos papéis que distribuem. Acreditam que há ternura. Destinatários de correspondências, Alex e Cátia ficaram tão emocionados que investigaram. Descobriram, agradeceram e, interessados, compraram botas e chapéus. Na beira do rio, participam. Transmitem mensagens de amor.

Método

Substituiu cálculos aleatórios por uma barreira abstrata. Ao invés de sobrecarregar, desocupa. Dá no mesmo. Profusão ou nada, via de regra, viram descanso. Começa quando precisa. Força a instauração do breu. Pela hiperatividade, é mais frenético. A rejeição é agressiva. Às vezes aplica o método antigo. Sucessão de contas com resultado incorreto. O novo, de diferente, tem o meio. Usa um campo de força. Rechaça idéias em formação pra impedir que ganhem profundidade.

Virada

Com paus nas mãos, brincaram de espada. Organizaram um campeonato. Antonio e Alice, no primeiro confronto, bateram Felipe e Reginaldo. Descobriram pontos fracos e fizeram incisões imaginárias. Foi fácil. No segundo, equilíbrio. Denis e Ramon começaram na frente. Abriram vantagem com simulações de corte de pescoço e perfuração estomacal. Pensaram que tava ganho, ficaram desatentos e tomaram a virada. Assistiram à final. Roni e Guilherme, na defensiva, esperaram. Tinham ensaiado o contra ataque. Na hora, erraram e caíram de lado. Médicos naquele dia, acionados pelo árbitro, examinaram as orelhas. Optaram pela amputação.

Submarino

O peixe espada, despido, foi até o baú. Nado simples, pra frente. Desconhece crawl, costas e borboleta. Com a barbatana, coletou o carregamento. Chegou na gruta, desembrulhou e consumiu. Denise, que rastejava despercebida, pediu um pouco. Negado. Voltou lá e, pra pegar mais coisa, levou um saco de batata. Encheu do que queria. Atum, brinquedos e uma vara. Ignorou o molinete, catou minhoca e botou no anzol. Pescou tilápia. Os carrinhos e bonecas, deu pros filhotes. Comeu o enlatado. Não sabia que o principal ainda tava guardado. Eraldo achou. Três colares, um brinco de prata e uma pulseira de ouro. Diamantes e esmeraldas. Trocou num submarino de duas portas. Da caixa grande, agora vazia no fundo do mar, tirou também o mapa que não incluiu na negociação. Lembrou do desenho animado e partiu sem medo. Durante a saga, no estilo pirata submerso, encontrou algo parecido com Atlântida.

Crescimento

Por falta de grana, come mal. Divide com a filha. Café da manhã, almoço e janta. Nada de biscoito, sorvete ou refrigerante. Faz a conta. Calcula a relação entre o pouco que recebe e o gasto mínimo necessário. Não repetem pratos e não há sobremesa. Têm fome até dormir. Acorda, faz café e economiza no açúcar. À tarde, pequenas porções. De noite também é difícil. Fatia o pão, esquenta e põe na mesa. A menina, em fase de crescimento, precisa de mais.

Saudação

Só Heloísa queria mais. Achou intenso e divertido. De acordo com a impressão que teve, infiel à realidade, foi recíproco. Passou rápido. Beijos, abraços e sorrisos. Despedida promissora. Declarações e chamegos. Combinaram de, no dia seguinte, marcar pro dia seguinte. Acordou, lembrou, ficou feliz e mandou uma saudação matinal. Armando recebeu. Também tinha gostado, mas não tanto. Não fazia o tipo dele. Respondeu com poucas palavras, simulou afinidade e torceu pra que desistisse logo. Não atendeu o telefone. Heloísa entendeu. Com a esperança reduzida, escreveu de novo. Tentou agradar. Pra estender a conversa, fez perguntas. Armando manteve o estilo. Simpatia mínima e nenhuma brecha.