Peixes III

Os animais de estimação, reunidos acidentalmente na época em que o conceito sequer existia, perceberam que era hora de tomar uma atitude. Nem sinal de predadores e caçadores no campo visual do cachorro, do papagaio e da tartaruga. Estavam a sós. Acostumados a fugir do perigo, conviveram pacificamente por motivos óbvios: para mamíferos sem asas e inteligência, fica difícil capturar um papagaio. Também não comem tartarugas, que, assim como as aves, não se alimentam de cães. Com nenhuma falta de apetite, vigiaram a beira do rio na esperança de surgir alguma presa fácil. Citaram os peixes. Papo vai, papo vem, um foi concordando com o outro até o penoso abrir o bico pra falar besteira. No fim, resolveram atacar. As futuras vítimas, ainda dentro d’água, nadavam. O cachorro pulou de barriga enquanto o pássaro indicava a rota. Réptil na retaguarda.

Tráfego

Em baixa velocidade por conta do tráfego à frente, cedeu à curiosidade do carona e puxou assunto: quanto custa esse negócio? Cesário, vendedor obstinado, deu o preço enquanto caminhava rapidamente em direção ao veículo. Diante da negativa do possível comprador, ofereceu um desconto de 50%. Estavam bem próximos, separados apenas pela porta do carro. Um de pé, andando, e o outro sentado, dirigindo. Continuaram o diálogo. Faço por dez. Não, não quero. Cesário jogou a mercadoria pela janela, no colo de Jair. Procura a grana aí no porta-luvas, dentro do cinzeiro. Correndo e suando, Cesário insistia: você deve ter, olha na carteira. Jair, impressionado, devolveu o produto e acelerou.

Festa

Não havia paredes além das que cercavam a estrutura de metal suspensa por cabos de aço extremamente resistentes. Os dois, lá dentro, aproveitaram o tempo livre para se divertir fora de casa. Compreensivelmente satisfeitos por terem ficado presos entre os andares, saíram de mãos dadas assim que abriram as portas do meio de transporte vertical. Uma caminhada rápida e já estavam de volta ao lar. Carinho aqui e ali, foram incapazes de resistir à hora de trocar de roupa e acabaram tirando o atraso da cabeça. Tinham uma festa pra ir. Vestido longo nela e uma calça qualquer nele. Despistaram os vigias e repetiram a dose numa área aparentemente deserta. Ausência pouco notada, voltaram pro convívio social sem alarde. Cadeiras lado a lado.

Olhos

Reparando com bons olhos nos detalhes de sempre e tomando conta da própria cabeça. Recorrendo ao velho modo de agir. Soltando o riso de criança, cantando em voz alta e andando rápido, sem descanso. Agora no gerúndio. Viver pra ser feliz em frações de segundos e continuar presente entre o verde das plantas e o azul do céu. Perseguido pela visão pessimista. Distraído pela versão mais simples e suave das opções, perdido no meio dos antigos sonhos e calado com a boca aberta. Dizendo não ao apego pelos comprovantes e aprovando o consumo em massa de canções de alta qualidade.

Gramas

Um pedaço maior do que o outro, emparelhados. A disparidade ficou evidente: 50 gramas contra uns 38, no máximo. Independentemente das controvérsias, o que vale é a honestidade de quem divide. A sua tá em cima da mesa. Não apresentado à metade bem servida, que ficou pro repartidor, o dono do resto catou o pouquinho e ficou decepcionado com a suposta falta de matéria-prima nos arredores. Antes da crise vinha mais, dava pra distribuir entre as visitas e garantir o consumo diário sem preocupações. O responsável pela separação, já acostumado, sentiu o peso na consciência mas não deu o braço a torcer. Disse que tava difícil arranjar, que tava ruim pra todo mundo e que também passava dificuldades. Se agisse bem sob pressão, Gilmar teria questionado o trapaceiro.