Três

Das três, duas desistiram e uma nem apareceu. A primeira era tão perfeita que só resolveu participar depois de um longo processo de convencimento. Usava calça jeans e camisa cinza. Com início promissor e final melancólico, foi quem esteve mais perto. Fica pra próxima. Já chegou interessada na oportunidade e não fez por menos. Beneficiada pelo trauma adquirido com a experiência anterior, logo conquistou espaço. Não tinha jogo de cintura, mas estava disposta a adquirir. Agendava encontros dispensáveis e participava de bate-bocas. Mesmo assim, deixou saudades quando resolveu abandonar o barco. Terceira chance. Para a parte interessada, os telefonemas e recados sugeriam um desejo mútuo de concretização. Nada explícito.

Chuveiro

Tenho que varrer tudo lá pra fora e nunca mais deixar chegar a esse ponto, pensou Jorge com outras palavras. Repetidas vezes. Em seguida, tirou a mão do rosto e desligou o chuveiro. Apesar de não premeditada, a concentração foi tão forte que de repente recebeu o aviso de novo. Da própria boca, em voz alta e língua estrangeira. Um tempo parado pra entender. Poucas vezes demonstrou tamanha lentidão para se secar e trocar de roupa. Queria mesmo supervalorizar o episódio, memorizar cada detalhe. Passado o momento supostamente mágico, começou a agir em prol do raciocínio. Foi membro ativo de conversas desnecessárias, levou os filhos na escola e executou tarefas entediantes com entusiasmo. Pretende continuar fiel à conduta porque parece o certo a se fazer.

Lembranças

Passa por cima de todo mundo porque é genial em determinados momentos. Por conta do talento específico, possui a confiança típica de quem guarda as respostas na ponta da língua. Geralmente é perdoado e despreza novidades não atreladas ao próprio nome. Isento de culpa pelo fracasso alheio, joga tudo na cara e espera reações adequadas ao que tem em mente. Enxerga os próprios defeitos, sofre e tudo o mais. Quando se esquece, aponta deficiências de pessoas improdutivas que falam por falar. Não tem dúvida de que as lembranças ficam resumidas ao que interessa.

Coleira

O nome mesmo é Valter. Tomada é o apelido. Eletricista da área, comprou um cachorro mas tá inseguro porque tem medo de que a escolha influencie negativamente no bem estar do animal. Cara e coroa. Caiu o que não queria. Pensou melhor e chegou à conclusão de que algo tão importante não deve ser decidido assim. Para o quadrúpede, só importava o que vinha pela frente. Aproximou-se do elemento sólido com aroma diferenciado, pegou e mastigou. Enquanto isso, Valter começou a pesquisar. Convencido pela incidência de vira-latas abandonados, finalmente resolveu executar o procedimento. Saiu com a coleira na mão e capturou o companheiro. Antes de começar a latir com olhar fixo no objeto cortante, coçou a lateral do corpo e fez força pra andar em outra direção. Não adiantou. Dá pra perceber que, apesar de irracional, agora fica um pouco mais triste quando brinca com o filhote dos outros.