Perfume

Pra sair com o outro, botou a calcinha mais sexy. Bem pequena. Lingerie rosa, enfiada na bunda. Ganhou no aniversário de casamento. Dez anos depois de dizer que sim. Usou o perfume guardado, a blusa decotada e a saia preferida do marido. Uma curta, colorida, adquirida na viagem que fizeram pra espairecer. Voltaram de mãos dadas no carro. Juras de amor eterno. O amante comeu a esposa de tudo que é jeito. Com preliminares, força e requintes de crueldade na ótica do homem traído. Perdeu o controle quando descobriu.

Prato

Gosta de chuchu porque ajuda a comer camarão. O crustáceo, sozinho, dá coceira, náusea e inchaço na garganta. Quando misturado ao alimento mal quisto até a descoberta, é inofensivo. São inseparáveis pra Régis. Num dia de sábado, à noite, viu a janta da mãe. Arroz com os dois. Deu água na boca. A dele, ovo frito, tava boa, mas cresceu o olho na alheia. Pediu pra provar. Dona Ana, preocupada, negou. Disse que não tinha necessidade e que não arcaria com as consequências. O filho insistiu. Tanto que, pra que parasse, deixou. Deglutiu colheres de sopa. Nenhuma reação adversa. Surpreso, montou um prato exclusivo. Ficou tão satisfeito que passou a elogiar o vegetal.

Tijolo

Na frente, só via verde. Fumaça verde. Carros e ônibus. Asfalto verde. O líquido, vermelho, era verde. No céu verde, lua verde. Água do mar. Pintou o quadro com a tinta azul. Verde sobre verde. Pele e cabelo, verdes. Casa de tijolo verde. Camisa verde. Chega de verde. Ficou puto com o verde. Acordava e era verde. Odiou o verde. Passou o tempo. Só tinha o verde. Fez as pazes. Passeio no parque. Olhos abertos. Ainda verde.

Biscoito

Ninguém subiu na árvore pra salvar o bicho. Era preto. Se fosse branco, eu ia, disse o jovem de casaco verde. A moça do lado fez coro. Dois coroas e uma criança ficaram quietos. Na cidade, cheia de supersticiosos, colecionavam pés de coelho. Batiam na madeira. No caso do socorro ao felino, tinham medo de que, por falta de sorte, quebrasse um galho. O gato miava. Cheio de fome e sede, queria descer. Um forasteiro de boa índole, ignorante em relação às crenças locais, ousou bancar o herói. Foi obstruído pela massa. Deixou passar. De madrugada, com um amigo e uma escada gigante, voltou ao parque. O animal entendeu. Usou os degraus, bebeu água e comeu o biscoito que trouxeram.

Guidão

Voltava pra casa de bicicleta. Confiante, apertou o ritmo e convenceu a si próprio a fazer um teste. Quando chegasse na curva, embalado, tentaria imitar campeões da motovelocidade. Era pra direita. Entortaria o guidão, aproximaria o joelho do asfasto e retornaria à posição inicial. Passou do ponto e levou um tombaço. Caiu no chão desprotegido. Quem viu, achou engraçado. Levantou doído, envergonhado e todo ralado. Tinha um aniversário pra ir de tarde. Tava sol e o evento, informal, seria ao ar livre. Levaria sunga pra entrar na piscina. Não dava mais. Na gaveta de remédios, achou mercúrio, merthiolate e própolis. Encarou a ardência como punição merecida e foi pra festa de calça jeans.