Czares

Na época dos czares, a Rússia era bem maneira. Ivan IV, por exemplo, morreu louco. O ex-desenhista, agora pálido e afastado do nível do mar, estava um passo à frente dos demais. Enquanto os concorrentes vinham com o fubá, o angu de Ivan já estava pronto. Sua obra mais marcante foi a representação gráfica de um menino diante de uma tabuada colorida. Números em perspectiva. O diferenciado trabalho de IV caiu como uma bomba no meio artístico da antiga URSS. Os conservadores acharam besteira no início, mas logo compararam as telas com as de profissionais consagrados. Querendo ou não, a pintura de alto nível passava de fase. A insanidade adquirida por Ivan no fim de carreira tem relação direta com os produtos consumidos no início e durante. Um dia, sem mais nem menos, teve um filho. Ficou tão feliz com a escolha do nome que decidiu não fazer mais nada.

Busca

Olhou para o lado mas não viu o dispositivo azul com uma luz vermelha brilhante. Assim como os companheiros de espécie quando perdem o que não devem, começou a grande busca. Fuçou o quanto pôde e apelou para os locais mais improváveis. Varredura completa. O nó estava preso na garganta e a avalanche de pensamentos relacionados ao mesmo assunto crescia em progressão não identificada pela matemática contemporânea. Além de não poder compartilhar a sensação com os cidadãos ao redor, precisava manter a linguagem corporal inalterada, as frases articuladas e o senso de humor em dia. Limpava discretamente o suor enquanto os implacáveis minutos passavam sem dó. Quando já não agüentava mais, cochichou com o rapaz ao lado e foi instruído a vasculhar os bolsos e a mochila. Nada feito. Seguiu então para o banheiro e fechou os olhos para tentar completar mentalmente o trajeto entre o último instante em que via e o primeiro em que não via mais o dito cujo. Nada feito de novo. Os dias se sobrepunham constantemente e o protagonista era periodicamente acometido por lampejos que o lembravam da perda. Pelo menos o mal estar diminuía ao passo em que os dias viravam meses e assim por diante.

Lanternas

Semana sim, semana não, saem de cena as Lanternas de Outubro (LO). Movidas a pilha e embebidas em cromo, são pouco resistentes ao calor e possuem características físicas comuns. Fora o aspecto, nada mais é trivial em relação ao artefato. O poder conferido ao Dono de Lanterna (DL) é tal qual a força da natureza, que pode fazer de um pingo, letra. Tudo estaria perfeito não fossem as semanas não, que sucedem e antecedem a parte boa da coisa. Inconformados com a existência do período, os proprietários esquecem os momentos de prazer promovidos pelo objeto e perdem a cabeça. Em 1813, por exemplo, o meteorologista e DL Charles Norton se irritou ao ouvir a seguinte afirmação da própria esposa: você é um merda! Deu chilique e, empunhando uma lendária LO, agrediu a companheira. O fato veio à tona e a já enfraquecida cúpula decidiu afastar Charles. A partir de então, nada mais era claro e o receio tornou-se unanimidade entre os membros da decadente confraria. A tal Lanterna, jogada no canto, assistiu passivamente ao caos vivido na década de 20 daquele século.

Peso

Regina dirigia uma academia dirigida a pessoas envergonhadas pelo desprestígio físico imposto pela falta de sorte. Os halteres mais pesados, comumente sacaneados pelos coloridos devido a pouca intimidade com o sexo oposto, gozavam de sombra e água fresca enquanto os antigos zombadores se viam às voltas com a ausência de sex appeal. O estabelecimento era novidade no mercado, conquistou clientela e capitalizou a proprietária. O lado negativo da ascensão meteórica é que a tendência de crescimento tirava completamente Regina do prumo. O mal estar entre as placas, percebido apenas pelo homem magro que malhava perna, precisava ser contornado. De um lado, a sobrecarga de trabalho. Do outro, o ócio. As erguidas facilmente destratavam a freguesia e faziam hora extra. As pesadas contavam piadas e compartilhavam conteúdo esportivo e pornográfico. Resumidamente, o circo queimava e a derrocada era questão de tempo. Incapaz de perceber a gravidade da situação, Regina acompanhava o processo com desdém. Andou calmamente até o parquinho mais próximo e, como quem não quer nada, prosseguiu inoperante.

Ampulheta

Nem mesmo os crédulos acreditariam que a areia não queria mais descer e sequer dava trela pro outro lado da ampulheta. Após um longo burburinho, os componentes resultantes da decomposição de rochas resolveram dar um basta na interminável seqüência. Empolgados com a possibilidade, os grãos arquitetaram um plano que, resumidamente, consistia em permanecerem estáticos quando novamente revirados de ponta à cabeça. Estavam prontos. Como os moradores permaneceram um bom tempo indiferentes ao artefato, a hora H demorou um pouco a chegar. O ponto positivo do período potencialmente ocioso foi que puderam treinar exaustivamente o conjunto de ações a serem tomadas no momento decisivo. Quando finalmente a sombra cresceu, a porta do armário se abriu e a tampa da caixa foi levantada, deram as mãos e se colocaram a postos. Foi incrível. O lado vazio para baixo, o tempo passando e os minerais lá em cima, firmes e fortes. A mocinha balançava e batia no instrumento como quem usa um saleiro meia boca. Já os heróis, vivenciavam intensamente a realização do sonho, alimentado desde os primórdios do encapsulamento. O motim só não foi um sucesso absoluto porque a caçula queria muito brincar e chamou o pai.