Menina

Conheceu uma menina bonita, gostosa, inteligente e maneira. Casou e agora, anos depois, considera a esposa feia, ruim, burra e chata. Mas estão juntos há muito tempo. Têm filhos, medo de ficar sozinho, preguiça. Vivem de maneira interessante no ponto de vista de quem vê de fora com bom humor. Tomam café de manhã cedo, conversam amenidades e se despedem com um beijo obrigatório. Quando se reencontram, o mesmo beijo e perguntas relativas ao ocorrido durante as respectivas ausências. Tudo em dia, acabou o assunto. Botam na novela e comentam passagens de interpretação óbvia pra não dar problema. Um ato falho e pronto: cara emburrada em cômodos diferentes.

Atriz

Roberta não serviu pra representar a menina má que arrancava o cérebro de viajantes distraídos. Procuravam uma atriz de beleza intermediária. Letícia, a quinta candidata, decorou as falas, caprichou no gestual e errou tão pouco que venceu a disputa. Pra desempenhar o papel de maneira satisfatória, tarefa difícil pra qualquer um, aprendeu muita coisa em pouco tempo. Depois de dançar, cantar e dialogar diante das câmeras, passou no camarim pra descansar. O pior estava por vir. Tomou um empurrão, caiu de lado, bateu com a cabeça na quina, levantou devagar, recuperou os sentidos e correu atrás da vítima. No fim, ficaram frente a frente. Letícia, com a arma na mão, chegou perto e aplicou um golpe que separou a cabeça do corpo. Colocou o pedaço menor numa caixa com alças. Mais calma, levou o carregamento pra caverna sombria e tirou os miolos de dentro do crânio.

Comida

Nunca fui dona de padaria nem trabalhei com compra e venda de imóveis. Não gosto de mato. Não tomo café com a família e só uso roupa colorida quando me pedem. Não sou a menina charmosa e cheia de manias que cai fácil no gosto pessoal de sujeitos bem encarados. Queria ser a pintora casada com o jogador de basquete. Teria filhos, pintaria quadros bem pintados e passaria a tarde toda dentro de casa. Tive que sorrir quando tava triste, matei quando tive fome e beijei um cara chato e sem graça. Mesmo querendo ir embora, fiz comida e brinquei com a criança esquisita que falava demais. A vantagem é que passei esse tempo todo escondida.

Queda

Os quatro pneus, constantemente submetidos a longas jornadas, queriam trocar de carro. As ultrapassagens perderam a graça e as freadas bruscas irritavam. Carecas demais pra idade que tinham, escorregavam na água e nas curvas fechadas. Rodaram repetidas vezes durante o período que antecede a noite e ficaram parados até o dia seguinte. Saíram cedo da garagem. Carregando o peso do motor, passageiros, lataria e acessórios, andaram com a cara amarrada e a cabeça cheia de frases prontas pra serem ditas ao motorista. O dianteiro esquerdo, à flor da pele, passou por cima do que não devia, foi trocado e jogado fora. Pego de surpresa, o substituto não esperava tamanha queda de qualidade de vida.

Aviso

Em respeito ao aviso estampado na parede, ligou o chuveiro no quente pra misturar o vapor com a fumaça e passou um tempo sentado na privada com a tampa abaixada. Voltou pra onde estava antes disso. Sozinho na cama, deu uma risada de verdade, das que fazem fechar os olhos. O corpo tremia sob efeito da clara manifestação de alegria provocada por um motivo qualquer. Pena que a sensação boa, não experimentada desde a última vez, sofra interrupções. Pensou numa situação desagradável a qual seria submetido num futuro próximo. Refletiu sobre o assunto, superou a questão e foi no banheiro de novo.