Tipo

Faltava tudo, desde o início. Os tubos de sangue, etiquetados, mofavam no armário. Urina e fezes na gaveta. Utensílios na bancada e relógio no pulso. Examinou o primeiro. Tipo A, sem infecções. O de Vítor foi o segundo. Terceiro e quarto, saudáveis, deram pouco trabalho. Prosseguiu apressado. Por motivações clínicas, relacionadas à validade da amostra, jogou o subsequente fora. Depois vieram um jovem, uma doente e um idoso. Preencheu as fichas. Por falta de tempo, parou em Vanderlei. Sobraram alguns. Agnaldo, desinformado, esperou na fila.

Ocorrência

Falou com o namorado da amiga e deixou clara a intenção de transar. O dela, a caminho do quarto, não desconfiava. Chegou e viu. Ambos na cama, pelados. Ele ajoelhado e ela de quatro. Entretidos, não notaram o aparecimento de Plínio. Saiu quieto e chamou Isabel pra ver também. Quando manifestaram a repulsa, Marisa tava de pé, de costas pra Heitor. Interromperam a movimentação e cataram as roupas. Vestiam enquanto, desnorteados, improvisavam explicações. Os traídos, num comum acordo não planejado, mantiveram silêncio. Sem palavras, partiram. Tanto adúlteros quanto ludibriados refletiram sobre a ocorrência. O novo casal, oficializado após dissolução definitiva dos precedentes, durou pouco. Ciúmes em demasia.

Amigo

O que não existia, depois de pronto, seria apresentado. De um modo específico. Pra começar, forçou o cérebro. Idéias ruins, pensamentos distantes e possibilidades. Escolheu uma e insistiu. No rascunho, fez a cabeça. Cabelo branco e brinco de argola. Membros e tronco, desenhados, tomaram corpo. Rasurou o joelho e pintou os pés. Apagou tudo. Desistiu de ser humano. Criou um monstro de olhos azuis e dentes brancos. Sem pêlos. No clima, concebeu e caracterizou o amigo. Um robô engraçado, tímido e alto. Botou pra conversarem no parque. A criatura fantástica, extrovertida, explicava. Teorias complexas sobre matemática e filosofia. Números que, em tese, valiam menos.

Contentamento

Pra evitar saudades, prendeu num abraço. Apertado, sem brecha. Não soltou. Cansou da alegria finita, do tempo aprazível que cede a vez. Quer felicidade contínua. Paz no peito, mente sã e corpo em ordem. Dia após dia. Tanto que, naquele dia, apelou. Concretizou a idéia. Sentiu o momento mágico e, na distração da sensação, capturou. Segurou firme. Cegado pelo lado bom, não vê o aspecto negativo. É que, encarcerado, o contentamento não anda. Não passa pros outros. Pros vizinhos, tristes, sobram lamentações e pesares. Todos desiludidos. Deprimidos e deprimentes.

Recompensa

Deixa o melhor pro final. Batata frita, linguiça e bife. O grosso, feijão com arroz, farofa e macarrão, come primeiro. O que sobra é a recompensa. Às vezes, de olho grande, pensa em avançar. Passar direto pro frango ensopado. Não tem coragem. Tem medo de que, depois, não tenha ânimo pra acabar com a comida. De que abandone no prato. Seria errado, inconsequente e perigoso. Diversão antes da hora.