Espaços

Além de ocupar espaços, a tal estrutura física reage a estímulos e toma decisões. Por conta própria, de acordo com a superfície em que se encontra, é capaz de correr, andar ou nadar até qualquer lugar de possível acesso. Utiliza veículos pra chegar mais rápido. Diante de espelhos, exceto pela presença de defeito específico, enxerga a si própria. Cabe em locais vazios e cheira mal quando não submetida a sessões periódicas de limpeza. Sempre sujeita ao resultado prático de atividades involuntárias, troca um gás pelo outro e aperta as unhas contra os dedos. Começa a falhar ao longo do tempo.

Fotos

A agenda, dedicada ao amor que sentia, fica guardada junto com a coleção de fotos e cartões de aniversário. Na época, nem imaginava que um dia precisaria justificar o preenchimento das páginas. Só vontade mesmo, pura e simples. Não faria de novo por motivos óbvios. Está mais velho. Se por acaso cismasse de escrever todos os dias durante um ano, teria que mudar de assunto pra não parecer neurótico. Além do mais, já não liga tanto assim pra esse tipo de coisa. Até procura ficar por dentro das novidades, dá palpite e tudo. Mas a paixão diminuiu. Não adianta insistir. Sabe que o papel em branco continuaria na mesma.

Desenho

Mesmo insatisfeito com o desenho atual da própria face, dispensou cosméticos e barbeadores. Cabelo e roupa, apesar de reprovados, permaneceram intactos. Aproveitou o embalo pra não tomar banho nem escovar os dentes. Pelo menos progrediu no quesito higiene mental. Substituiu as falsas esperanças pelo desleixo, que, embora traga mazelas, é uma opção válida diante das circunstâncias. Bem humorado, negou o desodorante que ofereceram e saiu de chinelo com as unhas por fazer. Encontrou quem não queria. Quando pensou em disfarçar, já era tarde. Deu um sorriso amarelo, dois beijinhos no rosto e até que tentou, mas não evitou o abraço.

14

O 14 começou a aparecer na medida em que os jogos entre Abelardo e o sobrinho eram mais freqüentes. Produtividade acima da média, o fora de série também se destacava pelo desdém com que concluía as jogadas. O mais comum era receber na intermediária, avançar um pouco e já aplicar o golpe de misericórdia, na gaveta. O disparo contra a meta, por associação com armas de fogo, foi chamado primeiro de tiro. Uma pitada de inglês fajuto e virou "tairo". O talento do craque era tão grande que o tio também entrou no clima de exaltação ao atleta controlado pelo menino. Volta e meia, narravam juntos o gol que acabara de sair: "um taaaairo do 14!".