Passo

Sentiu de novo. Não esperava. Não queria. Ao invés de dormir, ensaia. Palavra por palavra. Decifra reações. Tenta entender. Evidências e sintomas, nítidos, assustam. É forte, constante. Parece o passado, só que pior. Não tem certeza. Aconselha a mente. A esquecer. Deixar pra lá pra não tomar outro tiro no peito. É incrível. É o que procura. Se não isso, nada. Faz tempo que cogita. No início, pouco caso. Autoproteção. Até que, de passo em passo, chegou perto. Grudou. Tomou posse. Agora, atingido, pena. Bicho bobo. Conta os dias.

Fantasia

O cabeça da tribo, conhecido como tal, sugeriu um luau. Ninguém respondeu. Contrariado, pensou em outra coisa. Não quis reclamar. Propôs uma festa à fantasia, de gente da cidade. Gostaram, mas, pra não dar o braço a torcer, ficaram quietos. Estavam com raiva porque tinham sido manipulados. Usados como força de trabalho num projeto que rendeu frutos somente pro idealizador. Errar de novo seria o fim. O cabeça, já preocupado, pediu desculpas. Disse que vacilou mesmo. Que, com a melhor das intenções, agiu mal. Aceitaram. De ternos, gravatas e vestidos, chegaram. Foram metralhados.

Abrigo

A metros da ilha, boiaram. Vinham de longe e, cansados, combinaram de parar pela última vez. Olharam pro céu. Conversaram sobre o que fariam depois que chegassem. Consumiriam peixes, água de coco e andariam pelados na areia fofa. Na véspera, caíram do balão. Voavam sobre o oceano quando foram atingidos pelo projétil perdido. Passaram o dia no mar. Como sabiam nadar, seguiram na direção da terra que tava à vista. Fim de papo, novas braçadas. Linha reta. Desnutridos e desgastados, não transaram de cara. Procuraram abrigo. Acharam, no mato, um bicho morto. Comeram cru. Improvisaram a cama de casal e fizeram bom uso.

Garganta

Gastou tanto que não sobrou nada. Nem um pingo. Virou, chacoalhou e, assustado, reconheceu. Acabou mesmo. Ficou mal. Sentiu dores no peito e nós na garganta. Olhou de novo. Lembrou dela inteirinha, à mão. Deixou que secasse. Sente falta. Não acreditou que o uso e abuso seriam capazes de extinguir o conteúdo. Corroía. Dias mais, dias menos, metia a mão por dentro. Arrancava e arranhava. Queria ter sido avisado. Que, próximo ao esgotamento, tivessem acendido a luz. Ficaria claro que cairia em desgraça. Que chegaria ao fim.

Garrafa

Rabanada no alho com esfirra de maionese. Pudim de empadão. Sorvete de ovo frito, suco de azeitona e carne de monstro. Comeu sem saber direito. Viu que tava na mesa e, sem frescura, ingeriu. Não achou ruim não. O estômago reagiu bem, acordou tranquilo e ficou na boa. Quibe de garrafa. Pasta de gelo e torrada de alpiste. Limpou o prato. Na casa dos pais, de noite, arroz com feijão. Frango grelhado, batata frita e farofa. Achou tão sem graça que, na refeição seguinte, revisitou a culinária insólita. Laranja corada. Sopa de amendoim na chapa, leite de peixe e salada de porco à moda boi. Sal de goiabada.