Calcinha

Nem liga se você está de calcinha ou cueca. Desprovido de libido, dispensa qualquer modalidade de sexo e romances em geral. Até existem rumores sobre relacionamentos físicos dos quais tenha participado, mas são desencontrados e merecem desprezo. De comprovado mesmo, só os beijos no rosto e abraços nos amigos. Chegou animado na festa. Conversou amistosamente com o pessoal, bebeu à vontade e deu uns tragos pra não passar em branco. Manteve-se quieto quando o assunto eram capas de revistas masculinas. Entre as meninas, retraiu-se discretamente durante o papo cabeludo que tiveram perto do bar. A verdade é que gostaria muito de ter alguém pra conviver pacificamente e jantar a dois sem a obrigação de transar. Rejeita promoções para aquisição de canais adultos e mantém distância de bordéis e similares. Depois de tanto tempo, nem sente mais falta.

Branco

O branco foi tão intenso que está com medo de acontecer de novo. Atormentado pela infeliz seqüência dos fatos, busca uma justificativa convincente para tamanha imperícia demonstrada diante das circunstâncias. Tinha um monte de gente falando alto, um cara magro de óculos mais pra trás e quatro pessoas paradas do outro lado. Começou a agir sem pensar, na esperança de as coisas darem certo por acaso. Depois veio uma mulher de 42 anos muito irritada com o desfecho do episódio. De tão coberta de razão que estava, esbravejou durante uns dez minutos, mesmo tendo sido apoiada desde o início pelo fragilizado interlocutor. Nada de saudações ou cumprimentos antes de partirem cada um pro seu canto. Para alívio do rapaz, o dia finalmente pôde prosseguir como de praxe. Elaborou alguns exemplos de condutas mais adequadas e aproveitou a deixa pra exercitar a capacidade de esquecer pessoas.

Rumo

Estava achando o livro tão chato que resolveu ler rápido. Passava por cima de um personagem ou outro, ignorava as características de determinado vilarejo e andava sem rumo em direção ao próximo capítulo. Mantinha respeito à sinalização ortográfica e só. Apesar de não captar a intenção do autor com o conjunto de palavras que ficavam pra trás, sentia prazer em passear descompromissadamente pelas páginas. Se bem que, verdade seja dita, até se interessava um pouco pelas linhas referentes à conturbada relação entre os protagonistas. Ele, mais novo e obcecado, não sabia como reagir ao mau humor gratuito esbanjado por ela nos momentos de lazer que não envolviam sexo. O pior era resgatar o fio da meada depois de dias longe da narrativa. Várias pessoas e lugares eram simplesmente citados, ao invés de reapresentados ao impaciente leitor acostumado a desprezar termos desconhecidos e notas de rodapé. Quando lia em casa, deitava de lado com o volume apoiado na cama. Trocava de posição freqüentemente. Dormiu bem, mas logo acordou com a cara apontada para o algoz de capa branca. Chega. Sentou direito e reiniciou a atividade com os olhos arregalados. Como não tem coragem de pular os parágrafos, acelera o processo do jeito que dá.

Corpo

Aquele cheiro que não gostava de sentir quando era criança agora sai do próprio corpo. Antes de assumir a responsabilidade pelas aparições do aroma, fingia que nem era com ele e atribuía o inconveniente a uma coincidência provocada pela má conservação de roupas velhas e toalhas usadas. Muito calor, ventilador fraco, resolveu ficar pelado. Não teve pra onde correr. A fragrância que expulsava pelos poros batia exatamente com o odor repugnante do qual preferia manter distância. O mal estar extrapolou o aspecto sensorial. Só não saiu desesperado atrás de um médico porque, do jeito que é, ficaria envergonhado de revelar tal particularidade a um estranho. Passou então a evitar lugares fechados e abusou dos produtos químicos capazes de amenizar o efeito do suor. Apesar de jamais ter ouvido reclamações relativas ao perfume exalado, deixou de praticar esportes de contato e mantém os braços paralelos ao tronco.