Paisagem

Todo mundo, tirando algumas pessoas, leva menos de dois minutos pra contar até cem. Ricardo é um exemplo. Além de reproduzir mentalmente a seqüência numérica do início ao fim, assovia de improviso, ouve música no rádio e canta junto quando dá vontade. Não tem muito o que fazer enquanto segue em frente por tempo indeterminado. Fica atento aos espelhos e às vezes repara na paisagem. Limitado ao trajeto entre lugares diferentes, aproveita as idas e vindas pra pensar na vida. Um dia precisou ir embora no meio da noite. Saiu debaixo das cobertas com os olhos pela metade, tomou banho e escovou os dentes. Não tinha ninguém pra acompanhar os preparativos nem pra ver o semblante triste de alguém que se esforça pra não chorar.

Boate

Júlio chegou derrotado na boate. Se ninguém falasse nada, teria ficado em casa, com a roupa do corpo. Mas foi assim: o telefone tocou e o rapaz confirmou presença. Como as melhores camisas estavam sujas, vestiu uma que diminuía a autoconfiança. No mais, calça jeans de caimento esquisito e um par de tênis brancos. Ficou pronto pra sair com cara de tacho. Já no recinto, propício ao desencadeamento de relacionamentos passageiros, ouvia a trilha sonora prometida pelos organizadores. Chegou pro canto e começou uma dança de baixo nível técnico. Por desencargo, deu uma volta de olhos abertos pra procurar alguém que se sujeitasse. Caso tivesse queda por homens mal vestidos, mal humorados, sem ritmo e não muito bonitos, a menina de saia branca largaria as amigas pra puxar papo. Não foi dessa vez.

Pedras

Saiu do zero mas não quis dar continuidade ao esboço que sequer existia até o surgimento. Achou o tema batido e sem graça. Pra criar um desenho novo, precisava de uma idéia especial. A goma, na boca, de tão mastigada perdeu o gosto. Caiu do céu, passou por baixo da língua e parou entre a bochecha e os dentes. A inspiração chegou enquanto a roteirista pegava mais um chiclete na bolsa. Imaginou a vida no corpo humano. Escreveu diálogos entre células nervosas, cenas do fígado reclamando de sobrecarga e do estômago cheio do intestino. Nas artérias, sangue correndo pra chegar a tempo no coração ansioso. Mostrou os músculos zombando das gorduras e os pulmões cansados de respirar. As pedras, nos rins, não perceberam o aumento súbito da pressão. Na estória de Mariana, a moradia dos personagens desaba com os habitantes lá dentro.

Buracos

Ligado na tomada, o ventilador antigo reagiu de maneira diferente. Tatiana então puxou o fio, deu uma olhada na ponta e botou os dois pinos de volta nos dois buracos. O aparelho, paradão, tinha perdido as forças. Apesar do inevitável abandono, o objeto inanimado não sofreu. A dona é que lamentou a perda. Principalmente porque o eletrodoméstico não tinha substituto e já era tarde para aquisições do gênero. De calcinha e sutiã, deitou suada no lençol que grudava. Rolava, abria as pernas e afastava os braços. Ficava de bruços, de frente, de lado. Queria muito substituir o desconforto pelo limbo experimentado por quem dorme. Demorou um tempo.