Calhas

Aos poucos, caem as calhas do teto da casinha que fica ao lado do morro mais íngreme da região. Falo de calhas sagradas. Toda a água que escorre pelos dutos é impura, apesar de completamente livre de macro e microorganismos. Não potável, como sempre foi, a combinação entre uma molécula de oxigênio e duas de hidrogênio possui a companhia de ingredientes capazes de impedir que os pobres consumidores possam defecar ou urinar novamente. É estranho, mas a maldição não afasta os curiosos do outro lado do monte, que levam três dias e duas noites para atravessar a elevação do terreno. Como resultado do consumo irracional, surge um povoado composto por cidadãos de bem, embora imundos por dentro. O paradoxo jamais foi alvo de estudos acadêmicos ou alternativos. Sem saída e conseqüentemente propensos a acreditar em qualquer coisa, os contaminados sonham com o dia em que as calhas finalmente toquem o chão.

Apito

Havia um caderno de capa cinza dentro da sala de aula, bem longe dos corneteiros que permaneciam perfilados só esperando o apito. O constrangimento estava no ar porque o responsável pelo estímulo sonoro precisava do conjunto de folhas pra dar a largada. Nesse meio tempo, os músicos experientes conversavam com os mais novos sobre as idas e vindas de uma bola de metal utilizada em fliperamas. Assim que chegou com as partituras, pediu licença aos comandados para em seguida sinalizar o início do festival. As crianças perseguiam umas às outras em alta velocidade. O time de preto, mais bem treinado, logo abriu vantagem com uma jogada ensaiada durante os recreios da semana. Na arquibancada, manifestações comuns e encontros que começavam ansiosos pela despedida. Os tios torciam pelos sobrinhos, os pais pelos filhos e a banda não parava de tocar.

Ruas

Ciente de que chegou numa hora ruim, o dia seguinte fez de tudo pra passar despercebido. Manteve o clima estável e as ruas desertas. Com baixo índice de ocorrências relevantes, acolheu de maneira exemplar o mal estar causado pela véspera. Só lamenta o fato de não ter ido além. Depois de sonhar com grandes jogos, frases de efeito e viradas de mesa, caiu na real quando percebeu que o pessoal não estava pra brincadeira. Reclamavam da sorte e trabalhavam em grupos para amenizar as conseqüências. É claro que um ou outro levou vantagem com o desenrolar dos fatos. Não afetados pelo drama alheio, puderam aproveitar o período como se nada tivesse acontecido. O dia, solidário ao sentimento predominante, prosseguiu focado no lado negativo da coisa. Nem um minuto a mais ou a menos. Meia noite em ponto, juntou os trapos e foi embora sem graça.

Zero

Estava com pouco dinheiro pra mandar o telegrama. Eufórica, demorou a entender que, nessas horas, escrever é contar palavras. Te amo. Depois ficou na dúvida, mas já tava feito. Nada de chegar o telegrama de volta. Juntou uns trocados e foi aos correios na semana seguinte. Me ama? Quase indiferente ao silêncio, toca o telefone. Mais um encontro. Olhos nos trejeitos, velhas manias. Foi aí que Aline percebeu a própria insanidade e optou por acabar com a brincadeira. Mais um telegrama. Só que dele pra ela. Luciano queria detalhes. Sem grana pra explicar a mesma coisa de um jeito diferente, decidiu só calcular o prejuízo depois que o texto ficasse pronto. Queria deixar claro que não valeria a pena por causa disso e daquilo. Dois rascunhos, inspiração zero. Se esforçou, pensou, puxou pela memória. Pra resolver tudo de uma vez, deixou pra lá.