Fila

Depois de um ano, veio outro. Dois mil e tantos. Num desses, num povoado, Alex puxou a fila. Corriam de chinelo. A intenção, de chegar o quanto antes, era comum. Cansou. Ultrapassado por um, continuou. Acreditava. Veio o segundo. Relaxou depois que o terceiro, pela esquerda, deixou pra trás. Desistiu. Baixou a bola e a obstinação, verdadeira, virou descanso. Perdeu pra muita gente. Foi o quadragésimo. Bebeu água, tomou banho e se despediu. Chegou sem graça em casa. Derrotado. Na dúvida, cancelou o treino. Talvez pare de correr.

Significado

Pensa enquanto espera. No que houve. No que esqueceu, no significado e no resultado. No que pode fazer. Esqueceu. Nunca pensou. Agora que passou, reflete. Teria esperado, sofrido e feito o que, dessa vez, não fez. Não lembrou. Cabeça cheia. Caos. Assaltos, mortes e invasões. Hospitais. Colégios vazios. Parou um pouco. Daqui a pouco vai passear. Tá esperando.

Estrada

Uma entre tantas. Diferente. A formatação é a mesma, mas marca. Diz muito. Significa muito. Ruptura, condições e esperança. Bifurcação. Estrada. Tem o coração nela, exposto. Persegue. Ouviu, no fim do dia, o que disseram. Declaração gratuita de carinho. Ingênua. Emocionado, segue.

Fruta

Do lado de fora, debaixo da árvore, caiu a fruta. Doce. Madura. Junior monitorava, esperava pela queda. Proprietário da propriedade privada, dormia no momento do evento. Tava cansado. Tinha catado coco, lavado o carro e pintado a sala. Botou a rede na varanda. Deitou de tarde, depois do almoço. Prato típico. Do sono profundo, aos roncos, não acordou. Quase não fez barulho. O contato com o chão de terra destruiu o alimento. Espatifou. Desperdiçado, ficou lá. Pisaram em cima.

Barata

Pra constar, escreveu às pressas. Mensagem barata. Linguajar de sempre, conteúdo inútil e nada a acrescentar. Perda de tempo. Pra quem lê, decepção. Mistura de frases nervosas. Pouco inspiradas. Formuladas na correria, fazem sentido mas não importam. São vazias. Inexpressivas. Construídas nas coxas, ocupam espaço. Formam um todo que não faz diferença. Foram entregues.

Tropeço

Do início ao fim, flui. Não para. Pesa na raiva, descansa no colo e carinho nervoso. Silencia e volta. Até acabar, te leva. Sem tropeço. Acelera, trava e, devagar, acalma. Grita. Faz sentido. Cresce, ganha tempo e corpo. Completa. É quem, até acabar, te leva.

Pilha

Todo mundo cansado. Destruído. O desgaste, provocado pela repetição incessante, é enorme. Não passa. Acordam cansados, dormem cansados e, no intervalo, cansaço. Não aguentam mais. Não reagem. Gostariam de, amanhã, acordar melhor. Dormem de novo.

Fábrica

Não existe até, de repente, passar a existir. É fruto do sexo. Concepção, fecundação e sai completo. Boca, orelha e nariz. Pronto. Da vagina, qualquer lugar. Qualquer família. Enquanto vivo, toma atitudes. Com o cérebro de fábrica. Envolto pelo crânio de fábrica. Esqueleto e pele. Tudo de fábrica. Ninguém tem culpa. De nada.

Garupa

Não sei onde está. Não vou saber nunca. Nenhuma notícia. Da última vez, na garupa da bicicleta, olhava pra trás. Pra mim. Pra minha mãe. Naquela época, a mãe era nossa. Deixou de ser. Naquele dia. Triste, chorava. Gritava. Soluçava. Queria muito ficar. Não queria ir. Queria ficar. Queria que ficasse. Que soubesse do carinho. Do que guardo. Naquele dia, foi embora. Foi levado.

Almoço

Engravidou no fim de semana. Foda bem dada, gozada dentro e travesseiro. Dormiram e acordaram. De tarde, tomaram café. Exaltaram a véspera. Mais beijos, abraços e despedida. Já tinham o contato um do outro. Meses depois, almoço. Conversa que virou discussão que virou agressão. Nenhum soco. Nenhum chute. Um chope, gelado, na cabeça de Arnaldo. Nenhum acordo.

Pressa

Numa conversa, escuta sem querer. Não ouve. Não importa. Passa por cima e, com pressa, afirma. Repete. Interrompe questões, réplicas e comentários. Quer contar. Explicar. Criticar, reclamar e brigar. Não quer saber. Quer que pare. Que cale. Que, convencido, concorde.

Serviço

Ultravioleta, atingiu Denise. Mais de um. Barriga, pescoço e braço. Perna e bunda. Vários. Insensíveis. A pele sensível, exposta, foi castigada. Vinham aos montes. Miravam. Vibravam com a ausência da camada de proteção. Foram tantos e tão certeiros que, naquela hora, terminaram o serviço. Sintomas clássicos. Desespero. No primeiro impacto, quando viu o rosto pra ajeitar o cabelo, saiu do sol. Tarde.

Príncipe

Acha a lua feia. Pôr do sol. Cachoeira, jardim e borboleta. Príncipe e princesa. Não quer abraço. Nem beijo nem cafuné. Nada de festa. Passeio no parque. Aponta pros lados, pra trás e pra frente. Não gosta da mãe. Não gosta do pai. Ninguém. Considera o sorriso, besteira. Critica a onda, a areia e o mar. Música. Estrela e nuvem. Teatro e flor. Condena a chuva e o frio. Literatura. Calor. Reclama do cachorro. Do peixe, do pato e do resto. Do desenho. Da dança. Não gosta da vida. Nem da morte.

Produto

Queria provocar, naquele exemplar, contentamento. Pensou num presente. Num que fosse bom. Imaginou que, do jeito que é, gostaria de algo relacionado à religião. À música. Podia ser esporte também. Precisava extrair, da imagem que tem, um produto. Algo à venda. Microfone, pandeiro, cruz ou preto velho. Camisa de time. Que enxergasse, naquilo, o tanto que ama. Especial. Pessoal. Alguma coisa. Uma homenagem.

Caracol

Até o sino, escada caracol. Nove minutos e 600 degraus. Tava no 38. Subia. Nervoso, subia. Corria pra cima. De dois em dois. Se não chegasse meio-dia, cortariam a cabeça. Subia pra não morrer. Tinha saído na véspera e, ao invés de levantar na hora, acionou a soneca. Não tinha mais tempo. Subia. Degrau 328. 11h56. Era veloz. Fazia isso todo dia. Subia. Deu 11h59 e já tava no 523. Quase lá. Um minuto. Alcançou o topo e caiu no chão. O sino, doido pra tocar, deu força. Levantou. Andou, pegou na corda e balançou. Não foi dessa vez.

Extremo

Castigado pelo acaso, convive agora com o extremo oposto do que criticava. Reclamava diariamente. O comportamento atual, inverso ao qual já foi submetido, também não presta. Nenhum dos dois. Parece brincadeira. Ironia. Era veemente. Dizia que incomodava, que não devia ser assim e que não queria mais. Hoje, por algum motivo, sofre com o contrário. Oitenta do oito. Quando chiava, sonhava com o equilíbrio. Não tem. É sina. Tá fadado.

Passo

Descobriu, de repente, que tem joelho direito. Não tinha percebido. Foi num passo, numa música. Reparou, naquela hora, a presença da articulação óssea que liga a coxa à canela. Já sabia do esquerdo. Usava sempre. Agora, com outro, muda tudo. Pode fazer diferente. Movimentar.

Espécie

Pronto pra dar com a barra de ferro no crânio de um companheiro de espécie, dorme. Pra dar um tiro. Dorme atento. Num barulho, energia. Levanta e vai atrás. Anda armado. Disposto a, de imediato, atacar. Violência contra violência. Proteção. Pra não ficar de vítima, réu. Defende o espancamento alheio. Do culpado. Do criminoso. Se for o caso, extermínio. Dorme em casa. Vulnerável.

Culpa

Atenta ao chão, voa. Pra cima e pra baixo. Bate forte a asa presa ao corpo. Tem pressa, culpa e medo. Entre nuvens, viaja. Passa frio, morno e quente. Rasante. Quase morte. Enxerga, no asfalto, o fim. Escapa. Sobe. Descansa.

Alarme

Além do mais, o alicate. Tirou meu sono. Levou minha força, meu sangue e choro. Ainda caem. Tudo revirado. Papéis e roupas. TV. Do dinheiro, moedas. Alarme cortado. O barulho e a cena, o cenário, na cabeça. Invasão. Fuga pelo telhado. Tentativa, frustrada, de evitar. Vazio. Insone e incrédulo, destemido, delegacia. Desolado. Madrugada. Relato, registro e assinatura. Ironia e descaso. Procedimento padrão. Na perícia, coação. Pegou meu chocolate. Ladrão safado.

Cabeça

Só pensa. Não verbaliza. O que passa pela cabeça, sobre livros, fica guardado. Filmes e conversas. Deixa quieto o que escuta. Linhas completas de raciocínio. Opiniões formadas. Não defende, não se defende e não acusa. Quando insistem, ignora. Não quer saber. Chamam de estranho. Dizem que é mudo. Dizem que é discreto. Dizem que, por falta do que falar, silencia. Dizem isso.

Mercado

Faz aos poucos. Elabora, no tempo que sobra, pedaços. Apaga. Materializa o que pensa em fragmentos construídos em intervalos irregulares. No quarto vazio, quieto. Ônibus e mercado. É um presente que aparece. Que procura. Lapida o que é bruto e, depois de pronto, entrega.

Dança

Um sorriso. Só um. Sorriso dela. Sorriso dos sonhos que sorriu pra mim. De mãos dadas, durante a dança. Parece mesmo um raio, o nascer e o pôr do sol. Eu mesmo, admirado, sorri. Meu melhor sorriso. Pra ela.

Fábrica

Metido com venda de bala, morreu cedo. Vinte anos. Foi na fábrica, pegou o carregamento e, já em casa, separou em potes. Depois do almoço. Amigos, professores e seguranças. Senhoras de idade. Elogiado pela cordialidade e discrição, foi alvejado na esquina de sempre. Ponto conhecido. Os tiros, em diferentes partes do corpo, provocaram o óbito imediato. Assassino, vítima e testemunhas. Silêncio.

Surpresa

Quase morreu. Quase. Vinha de moto. Velocidade baixa, pouca atenção e surpresa. Mandaram parar. Desligar, descer e entregar. Ficou nervoso. Mandaram alguém atirar. Ouviu o que disseram. Aos berros. Carteira, pulseira e celular. Um soco. Dois chutes. Caído e sujo, ouviu o que disseram. Saíram. Ficou sozinho. Doído. Vivo, sente o gosto. Não volta atrás. Nada que apague.

Gastrite

Na primeira varredura, inchaço no pâncreas. Corrigido. Febre, dor de dente e torcicolo. De uma vez só. Um comprimido. Ficou bem. Anos depois, precisou de mais. Conjuntivite e cólica. Cegueira noturna. Dos dez que ganhou, sobraram três. Ficou com medo e, por isso, passou a poupar. Passou pela afta e pela gastrite. Fez uso de medicações convencionais. O primeiro dos últimos, incômodo na lombar. Curada. Veio a queda. Resistiu. Passou pomada comum. Sífilis e labirintite. Frasco vazio. Não tinha mais nada.

Dia

Naquele dia, era o que mais queria. Não veio. Agora veio. Passou do lado, solícito. Deixou que fosse. Naquele dia, pedia. Sofria. Era o que mais queria naquele dia. Hoje viu de frente. Disponível. Deixou que fosse. Naquele dia, não deixaria. Gritaria. Era, naquele dia, o que mais queria.

Ápice

Antes de mais nada, pra não dizer primeiramente e induzir ao complemento em voga, não se trata de política. É outro papo. Origem, desenvolvimento e ápice do pensamento. Do embrião à conclusão. Vida a dois ou mais, morte e emprego. Reflexões que geram flexões. Atividades em geral. Fazer café, ficar em casa. Ansiedades, raciocínio lógico e ideias malucas. Paz que, pelo motivo errado, toma conta. E o contrário.

Princípio

Nasceram naquele dia. Priscila, Sérgio, Régis, Ana e Alice. Nunca se conheceram. Nenhum destino cruzado. Em comum, além do aniversário, o de sempre: corpo e entorno. Cada um abriu os olhos a seu tempo. Países diferentes. A princípio, ausência de deformidades e deficiências. Pacote completo. Órgãos, veias e unhas. Um cérebro pra cada um.

Espaço

Quatro estorvos. Dois em cima e dois embaixo. Direita e esquerda. Ao invés de ajudar, atrapalhavam. Faziam força. Queriam espaço. Os demais, perfilados, não esperavam. Desconforto. Raiva. Discutiam sobre medidas a serem tomadas em relação à atitude condenável dos recém-chegados. Causavam dor. Optaram pela remoção impiedosa. Pelo despejo. Pra isso, planejaram e executaram um processo de três etapas. Injeção, ataque e extração. Arrancaram e voltaram ao normal.

Original

Pediu a mão de Mônica. Pegou e atravessaram. Do lado oposto ao original, brigaram. Disse que não precisava. Que já era grande e que, sem ajuda, conseguiria. Tava madura. A companhia discordou. Disse que não. Outra rua. Ordem, obediência amarga e briga. De novo. Relação desgastada. Uma, com pressa, apressava. A outra, boicote. Briga mais feia. Agressão física, choro e castigo. Nada de rua.

Caminho

Fim do volume I. Primeira parte. De passagem pela metade do caminho, salvo ocorrência fatal antes do que calcula, novidades. Volume II. Continuação da fase adulta, velhice e morte. Quase o mesmo tempo. Número de páginas. Gostou do primeiro. Às vésperas da transição, arranjos e rearranjos. Despedidas. A seguir, tudo de novo. Tédios e aventuras. Terror. Drama. Comédia, romance e fantasia.

Hipótese

Jurou que, em hipótese alguma, cederia novamente aos encantos de Daniel. Que era passado. Contou pros outros. Disse que nem pensar, que não queria e que tava recuperada. Nova em folha. Deram força. Apoiaram a iniciativa e citaram argumentos favoráveis à resolução. Saíram juntos. Todos. Daniel também. Com amigos em comum em volta, ficaram distantes. Fingiam não notar. Deu vontade em Marcela. Sentiu muita vontade. Resistiu. Por ela, já tava grudada faz tempo. Mas foi fraca, pensariam. Ficou nessa.

Roupa

Até a hora, horas e horas. Foi na rua e voltou. Comprou banana. Dormiu, acordou e dormiu. Comeu. Penteou o cabelo e escolheu a roupa. Dobrou e guardou. Viu de novo o que já tinha visto mais de uma vez. Cortou as unhas. Tomou banho quente, demorado. Ainda tinha tempo. Pensou na vida. No futuro próximo. Saiu cedo e esperou.

Falha

É uma pena que tenha nascido, crescido e interaja. Que exista. É lamentável. Repugnante. É uma pena que diga o que pensa. Que escutem. Que eu, azarado, tenha te conhecido. É triste. Você é deplorável. É um desserviço à evolução. É uma pena que, sendo assim, possa procriar. Você é um estorvo. É execrável. É uma pena que faça o que faz. Do jeito que faz. Você faz mal. É mal-vindo. É uma falha, uma lástima. É um erro.

Parede

A cabeça do galo, menor que a da média, cabia no buraco da parede. Descobriu no dia que tentou. Viu que, do outro lado, galinhas ciscavam. Nunca tinha visto. Naquela fazenda era assim. Pra que procriassem, botavam vendas em ambos. Tinham dificuldade pra acertar. Gostou dos corpos femininos e focava nas diferenças. Passou a botar, todo dia, a cabeça no buraco. Viu os ovos e ficou confuso. Depois viu os pintos. Vários. Alguns mamavam e outros não. Nunca entendeu. As penosas, no susto, descobriram o observador. Foi Margarete que percebeu. Contou pras outras. Cacarejavam sobre o diâmetro diminuto daquela caixa craniana.

Altura

Na balança, pesou os dois. Escolheu dinheiro. Parecia seguro. Tem roupa, comida e viaja. Volta mal. A companhia, chata, não dança. Não fantasia. Seria melhor se, àquela altura, tivesse priorizado a garantia de sorrisos bobos. Afeto. Sobre a vida, se engana. Diz que é assim mesmo. Que é triste. Protagoniza, nos sonhos, romances que ninguém vende. Faz de conta.

Sangue

Veio pedra. Parada. Pesada. Pra sair do lugar, vento forte. Chute ou tropeço. Alguém que cate. Jogada na cara, tirou sangue. Caiu no chão. Manchada, suja. Na chuva, banho. Alma lavada. Outro baque. De brincadeira, jogaram no rio. Encharcada, distante. No fundo, não tinha saída. Ficou lá. Veio a seca.

Facão

Até ser cortado, tava inteiro. Dobro do tamanho atual. Facão amolado. Quente. Duas pernas pra cada lado. Dois braços. Um coração só, um cérebro e dois olhos. Procura. Faltam pulmões e um nariz. Uma boca a menos.

Efeito

Propenso a tal, chorou à toa. Homenagens, confissões e mensagens. Qualquer coisa. Camisa, cabelo e mania. Conquista. Algumas frases, queria prender. Ficar pra sempre sob o efeito que fizeram. O tempo todo. Entre extremos, gangorra. Lamenta e celebra. Esquece. Respira. Por dentro, lama no arco-íris. Suicídio e ressurreição.

Diâmetro

No fundo do pote, amassada, sofreu. Foi a primeira. Tinha espaço, tempo e orgulho. Pensou errado. Pareceu, pra ela, que valia mais. Caíram em cima. Muitas. Pesaram. Sufocada e irritada, gritava. Queria ar. Era igual. Todas que chegavam, quietas, eram iguais. Diâmetro, cor e aparência. Por excesso de companhia, perdia o ar. Se contorcia. Até que um dia, descrente, foi salva. Foi pra outro canto. Espreguiçou.

Dinheiro

Feliz com a economia, ficou em casa. Tá duro. Viu filme de graça, tocou o violão que já tem e comeu o que tinha. Pra sair, ida, entrada, consumo e volta. Muito dinheiro. Ligaram no meio da noite. Mais de meia-noite. Disseram, aos berros, que tava ótimo. Que devia ir. Balançado, pesou. Tava bem sozinho no quarto. Tava sozinho. Seria bom chegar na festa. Lembrou de quando, em ocasiões parecidas, valeu a pena. Lembrou do contrário.

Ninguém

Na saída, beijou a barriga. Abriu um sorriso, deu tchau e foi embora. Ficou sozinha. Nervosa. Não conta pra ninguém que, na época, transou com Diogo. Pra isso mesmo. Pra ter um filho dele. Calculista, convenceu o marido a copular no dia seguinte. Agora torce. O cônjuge, certo de que é o pai, tá feliz. O então amante não faz idéia. Não sabe que a futura mãe, naquela noite, mentiu.

Papel

Escreve o que não diz. O que não sai da cabeça. O que, um dia, pra passar, precisa falar. Com medo de que a ação elimine a esperança, só desembucha no papel. Extravasa. Deixa muito claro o que sente por Eliana. Em frases escondidas, abre o jogo. Conta o que dói, o que encanta e o que sonha. Descreve e projeta. Pra ficar por perto, convites. Amizade e silêncio. Um cara desinibido, que não conheciam, veio e fez. Deu certo. Nas anotações, pesar. Torcida ferrenha pra que não evolua.

Café

Aquele berro, naquela hora, parecia mentira. Ninguém esperava. Mais cedo tudo bem. Sem comentários. Não diriam que, com certeza, ficou maluco. Que perdeu o controle. Foi alto. De tarde, depois do almoço. Acharam estranho. Gritou com força. Não disse nada, não explicou. Cismam que o barulho, nesse momento, é impróprio. Que não é natural. Pra ele, não faz diferença. Não se importa. Emite o som, agudo e estridente, quando quer.

Língua

Chamou de feia. Palavra simples, substantivo. Disse que é bradante. Que, pouco suave, soa mal. Reagiu. Usufruiu de palavrões. Quando chegou à língua, desde os primórdios, é assim. Mesmas letras, sílabas e sonoridade. Desempenha a função. Diferente de amor, felicidade e paraíso, é concreta. Ficou chateada, triste. É atacada, mal pronunciada e destratada. Apagada entre poderosas expressões, significa pouco. Detalhe.

Queda

Coloridos e com cabeça de ponta, catavam coco e jogavam pro alto. Na queda, conscientes, deixavam o crânio na reta. Quebravam, comiam e bebiam. De braguilha aberta, urinava quando questionado pelo diretor de operações. Pensou, guardou o pau azul e disse que iriam. Que o grande coco era questão de honra. Saíram e chegaram cedo no pé. Deslumbrados com o avantajado exemplar, sorridente lá em cima, se aproximaram. Formaram um círculo cheio. Com vara longa, cutucaram. Caiu onde queriam. Esmagamento e morte.

Prato

Pra esfriar a cabeça, passou a faca no pão. Arma branca de serra. Sem ponta. Abriu, arrancou os miolos e besuntou a bisnaga. Repousou num prato seco. Tomou leite também. Colher de sopa no pó. Com a esponja, lavou a louça. Detergente no lado verde. Alimentado, eliminou resíduos entre dentes. Arrumou o quarto e tomou banho. Fez tudo com calma. Respirou.

Teia

Pisou na barata e, de cócoras, varreu pra pazinha. Estapeou o mosquito. Nas formigas, chinelo. Chacina. Na aranha, na teia do teto, passou o rodo. Deu descarga no gongolo. Protege animais, mas não todos. Envenena ratos. Trucida bichos que considera nojentos. Que dão medo. Minhoca, corta no meio. Coelho não.

Arranjo

No shopping, vê as plantas. Comenta. Orquídeas na renda portuguesa. Amarela, azul e rosa. Pra namorada, tem arranjo. Flores na folha de plástico. Lojas, em segundo plano, à esquerda e à direita. Perto da escada, uma que não conhecia. Pediu informação. Aprendeu, anotou e agradeceu. Avenca no corredor. Deu tchau pra violeta e, feliz, foi embora sem comprar nada.

Estrela

Tem sonhado muito. Todo dia. De manhã então, entre sonecas, profusão. Têm inéditos, recentes e antigos. Tem um que é de praxe. Não a história, a protagonista. Aparece sempre. Estrela máxima dos conjuntos disparatados de imagens, ainda existe depois que acorda. Sente falta. Tenta dormir mais.

Ápice

Chegaram cedo no motel. Ligaram o ar e o rádio. Tiraram a roupa um do outro, passaram pelas preliminares e atingiram o ápice. Os dois. Ficaram abraçados. Conversaram, dormiram e acordaram rápido. Muitos beijos. Lambidas. Tudo de novo. Desta vez, saíram da cama. Fizeram em pé. Se olharam no espelho, usaram produtos adquiridos no sex shop e, depois de incontáveis idas e vindas, alcançaram o topo. Tinham tempo. Passado algum, mais uma. Dentro d'água. Demorada. Profundamente apaixonados, vidrados, viveram fantasias. Estavam no auge.