Partido

De bobeira, abriu o livro no meio e começou a contar. Página 43: 700 vogais e 590 consoantes. 44: 732 vogais e 650 consoantes. Quase parou, mas, motivado pelo resultado inesperado, continuou. Empate na 45 e vantagem das consoantes na 46: 800 a 700. A página 47, também vencida pelas consoantes, deixou tudo igual: dois a dois. Alexandre ficou tão empolgado que decidiu tomar partido. Escolheu as vogais e, nervoso, foi buscar um copo d’água na cozinha. Voltou depressa pro quarto e passou a mão na página decisiva pra ver se dava sorte. As adversárias, favoritas na opinião realista do torcedor, fizeram um bom primeiro parágrafo e largaram na frente. Alexandre suou frio. Com batimento cardíaco acelerado pela emoção intensa, se benzeu antes de dar prosseguimento à contagem em voz baixa. Fim de papo: vogais 699, consoantes 657, de virada. Sentiu falta de alguém pra sacanear.

Cordas

Henrique, um dos raros galos com discernimento, escolheu o próprio nome. É tão esperto que agora tá empenhado em fazer as cordas vocais emitirem sons articulados. Do jeito que são, não pode dizer o que pensa. Só escuta e vê. Na ânsia de falar qualquer coisa pra qualquer um, estuda o tema com afinco. Quase perdeu as esperanças ao ler numa revista que, independentemente do potencial cognitivo, o papagaio sempre será a única ave capaz de se pronunciar. Chorou de tristeza. No dia seguinte, saudável e disposto, abandonou os livros e partiu pra prática. Primeiro tentou contar de um a dez. Depois, por motivos particulares, arriscou as vogais. O passo a passo é assim: se concentra no caractere da vez, movimenta o bico como deveria e, quando solta a voz, cacareja.

Dor

O pau grande e grosso incomoda tanto que a penetração completa na vagina de Jaqueline é inviável. Tem entrado aos poucos, mas falta muito ainda. O dono do pênis, orgulhoso do órgão e triste pela situação, bota até onde dá e pressiona suavemente em direção ao fundo. Quando passa da conta, tira de dentro e espera. Jaqueline se contorce de olhos fechados. De manhã, no escritório, faz alongamento enquanto as colegas contam experiências próprias e dão dicas sobre como lidar com a dor. Sugerem líquidos e posições estratégicas. Dedicada, vê filmes de sexo entre casais desproporcionais e tenta incorporar as técnicas de encaixe demonstradas ao longo de cada película. Não tem dúvidas de que, com insistência e treinamento adequado, um dia consegue. Bernardo dá força.

Males

Convive com a possibilidade de ser seqüestrado, torturado e assassinado. Tem medo dos três. Principalmente de ser estuprado e lançado ao mar com um pedregulho amarrado no tornozelo. Depois vêm, em ordem aleatória de preferência, morrer queimado, empalado, esfaqueado e ter o pau decepado sem a possibilidade de interrupção do desperdício de sangue. No quesito torturas, a que mais incomoda Guilherme é indiscutivelmente desagradável. Além de potencial vítima da violência entre humanos, está sujeito a sofrer acidentes sérios, contrair doenças graves ou sentir fome a ponto de abandonar involuntariamente a vida que vive. Familiares e amigos, também suscetíveis a todos os males, procriam assim mesmo.